domingo, 23 de fevereiro de 2014
Ucrânia e Venezuela: lutar com palavras
“Lutar com palavras é a luta mais vã. No entanto lutamos mal rompe a manhã.” (Drummond)
por Rodrigo Vianna
por Rodrigo Vianna
Não
se trata de poesia. Mas de política. A edição da “Folha” desta
sexta-feira é mais uma demonstração de que a batalha nas ruas de Kiev ou
Caracas não é feita só de coquetéis molotov, bombas e fuzis. A batalha
se dá na mídia, na TV, na internet, nas páginas envelhecidas dos
jornais. São Paulo, Caracas, Kiev, Moscou e Washington. A batalha é uma
só.
Reparemos bem. Ao lado, temos a primeira página do jornal conservador
paulistano – o mesmo que apoiou o golpe de 64 e emprestou seus carros
para transporte de presos durante a ditadura militar. Na capa da
“Folha”, ucranianos escalam uma montanha de entulho no centro de Kiev, e
a legenda avisa: “Manifestantes antigoverno usam pneus e entulho para
montar barricadas…” Logo abaixo, uma chamada sobre reintegração de posse
em São Paulo: “Em SP, invasores destroem imóveis do Minha Casa”. Numa
página interna, o jornal informa que esse “invasores resistiram e, até a
noite, praticavam atos de vandalismo”. (página C-1)
Ucranianos não praticam “vandalismo”. São tratados de forma heróica.
Ainda que se saiba que parte dos manifestantes em Kiev tem um discurso
racista, próximo do nazismo. Brasileiros são “vândalos”. Ucranianos são
“manifestantes”.
Mas
sigamos adiante. Nas páginas internas, a “Folha” traz vários textos do
enviado especial a Kiev. Num deles, o repórter mostra uma pequena
fábrica para produção de coquetéis Molotov, dentro do Metrô de Kiev. O
cidadão que produz as bombas é descrito assim: “Sem afiliação a partidos
ou uma proposta ideológica clara, o cidadão diz ter sido atraído pela
praça e pelas manifestações a partir da ideia de que é necessário mudar o
sistema político na Ucrânia.”
Mudar o sistema político. Hum. Não fica claro se o cidadão quer uma
ditadura. A Ucrânia não é uma democracia? O governo não foi eleito pela
maioria? Hum… “Sem afiliação a partidos” – essa parece ser a chave para
legitimar tudo nos dias que correm. A CIA, os EUA, a CNN, a Folha não
tem filiação a partidos. Não. Nem o nobre manifestante de Kiev.
Ao lado da reportagem sobre os molotov, um texto opinativo assinado por
Igor Gielow (sobrenome “eslavo”, muito bom! Isso dá credibilidade ao
comentário). Basicamente, Gielow diz que a crise na Ucrânia é “reflexo
da estratégia de Putin para a região”. Ele não está errado. Pena que
esqueça de contar uma parte da história. “O importante não é o que eu
publico, mas o que deixo de publicar”, dizia Roberto Marinho.
Gielow e a “Folha” ensinam: Putin é um líder malvado, que pretende
manter na Ucrânia “a esfera de poder dos tempos imperiais e soviéticos”.
Aprendam: só a Rússia tem interesses imperiais na Ucrânia. Do outro
lado, há cidadãos sem afiliação partidária, lutando contra um insano
governo pró-Moscou. Os EUA e a Europa não têm interesses na Ucrânia. Só
Putin. A culpa é dos russos.
Na “Folha” luta-se com as palavras muito antes da manhã começar. Luta-se
com as palavras em Kiev, em São Paulo, Moscou. Washington fica
invisível. E toda a estratégia passa por aí. O poder imperial só existe
por parte da Rússia. Washington não tem qualquer projeto imperial: nem
na Ucrânia, nem na Síria, nem tampouco na América Latina…
Falando nisso, a cobertura sobre a Venezuela é também grandiosa no
diário da família Frias. Declarações de Maduro aparecem entre aspas.
Velho truque jornalistico para desqualificar, colocar no gueto da
suspeição, qualquer fala dos chavistas. Segundo a Folha, o governo de
Maduro afirma que o movimento (golpista? Isso a Folha não diz) é uma
armação de “forças de ultradireita da Venezuela e de Miami”. No texto
original a expressão está assim, entre aspas. Por que? Para dar a
impressão de que Maduro é um lunático, e que não há forças de
ultradireita lutando nas ruas. Não. Há só “estudantes” e “manifestantes”
(e agora sou eu que coloco entre aspas).
A legenda da foto ao lado (também publicada pelo jornal conservador
paulistano) diz: “Estudantes queimam lixo em atos contra Nicolás
Maduro”. Primeiro, como se sabe que o sujeito é um “estudante”? Depois,
reparem que queimar lixo na Venezuela é “ato contra Maduro“. Queimar
prédios em desapropriação, em São Paulo, vira “vandalismo”.
Em Caracas não há “vândalos”.
Ao
lado da foto, um texto assinado por repórter (que está em São
Paulo!!!!!) narra roubo de equipamento da CNN em Caracas: “o ataque à
CNN se assemelha a inúmeros relatos de motociclistas intimidando
manifestantes, com tolerância e até respaldo das forças de segurança do
governo”. O roubo ocorreu em manifestação da oposição. Mas o roubo
certamente é coisa dos chavistas. Claro. Nem é preciso ir até Caracas
pra saber (registro a bem da verdade factual que o repórter - a quem
conheço, ótima pessoa – foi correspondente em Caracas).
No mesmo texto (assinado, de São Paulo) os grupos que defendem o governo
são chamados de “milícias”. Ok. Já estive em Caracas cinco ou seis
vezes. E há grupos chavistas que se assemelham mesmo a milícias. Mas do
lado da oposição há o que? Não há milícias? A turma de Leopoldo, que deu
golpe em 2002, é formada por cidadãos inocentes. E só.
Quem lê a “Folha” aprende que, em Caracas, há de um lado “milícias chavistas”. De outro, só “estudantes” e “manifestantes”.
Não há neutralidade no uso das palavras. Nunca houve. Nunca haverá. E
quanto mais agudas as crises, mais isso fica claro. Há escolhas. A
“Folha” faz as suas. A CNN, a Telesur, a VTV – ou esse blogueiro. A
diferença é que uns assumem que têm lado. Outros fingem que estão “a
serviço do Brasil”.
Lutemos, com as palavras. Não há saída. O outro lado luta todos os dias, todas horas.
“Palavra, palavra
(digo exasperado),
se me desafias,
aceito o combate” (Drummond).
Texto original ; O ESCREVINHADOR
Nenhum comentário:
Postar um comentário