Coisas de que Joaquim Barbosa se esqueceu
de ficar triste
Antonio Lassance*
Alguém o viu expressar tristeza com o fato de o processo contra o
mensalão tucano não atribuir o mesmo crime de quadrilha a Eduardo Azeredo, do
PSDB de MG?
O presidente do Supremo, relator da AP 470, esbravejador-geral da
Nação, candidato em campanha a um cargo sabe-se lá do que nas eleições de
outubro, decretou solenemente:
"É uma tarde triste para o Supremo".
É curioso como Joaquim Barbosa se mostra triste com algumas coisas, e
não com outras.
Alguém o viu expressar tristeza com o fato de o processo contra o
mensalão tucano não atribuir o mesmo crime de quadrilha a Eduardo Azeredo
(PSDB-MG) & Companhia Limitada?
O inquérito da Procuradoria-Geral da República (INQ 2.280, hoje Ação
Penal 536), que sustenta a denúncia contra Azeredo, foi apresentado pelo mesmo
Procurador (Roberto Gurgel), ao mesmo STF que julgou o mensalão petista, e caiu
nas mãos do mesmo relator, ele mesmo, Joaquim Barbosa.
O que dizia o Procurador? Que o mensalão tucano "retrata a mesma
estrutura operacional de desvio de recursos públicos, lavagem de dinheiro e
simulação de empréstimos bancários objeto da denúncia que deu causa a ação
penal 470, recebida por essa Corte Suprema, e envolve basicamente as mesmas
empresas do grupo de Marcos Valério e o mesmo grupo financeiro (Banco Rural)”.
Se é tudo a mesma coisa, se são os mesmos crimes, praticados pelas
mesmas empresas, com o mesmo operador, cadê o crime de quadrilha, de que
Barbosa faz tanta questão para os petistas?
Alguém viu o presidente do Supremo expressar sua tristeza sobre o
assunto?
Alguém o viu decretar a tristeza no STF quando o processo contra os
tucanos, ao contrário do ocorrido com a AP 470, foi desmembrado, tirando do STF
uma parte da responsabilidade por seu julgamento?
Talvez muitos não se lembrem, mas as decisões de desmembrar o processo
do mensalão tucano e de livrar Azeredo e os demais da imputação do crime de
quadrilha partiram do próprio Joaquim Barbosa.
Foi ele o primeiro relator do mensalão tucano. Foi ele quem recomendou
tratamento distinto aos tucanos.
Justificou, sem qualquer prurido, que os réus estariam livres da
imputação do crime de formação de quadrilha “até mesmo porque já estaria
prescrito pela pena em abstrato”, disse e escreveu Barbosa, em uma dessas
tardes tristes.
Mais que isso, livrou os tucanos também da imputação de corrupção ativa
e corrupção passiva.
O que se tem visto, reiteradamente, são dois pesos, duas medidas e um
espetáculo de arbítrio de um presidente que resolveu usar o plenário do STF
como tribuna para uma campanha eleitoral antecipada de sua possível e badalada
candidatura, sabe-se lá por qual "partido de mentirinha", como ele
mesmo qualificou a todos.
E as tantas outras tristezas não decretadas?
Vimos a maioria que compõe hoje o STF ser destratada como se fosse
cúmplice de um crime; um outro bando de criminosos, portanto, simplesmente por
divergirem de seu presidente e derrotá-lo quanto a uma única acusação da AP
470.
Que exemplo!
Sempre que um ministro do Supremo, seja ele quem for, trocar argumentos
por agressões, será uma tarde triste para o Supremo.
Há uma avalanche de questões importantes, que dormem há décadas no STF,
e que seriam suficientes para que se decretasse que todas as suas tardes são
tristes.
Não só há decisões, certas para uns, erradas para outros. Há sempre uma
tarde triste no STF pela falta de julgamentos importantes. Cerca de metade das
ações de inconstitucionalidade impetradas junto ao Supremo simplesmente não são
julgadas.
Dessas, a maioria simplesmente é extinta por perda de objeto. Ou seja,
o longo tempo decorrido é quem cuida de dar cabo da ação, tornando qualquer
decisão desnecessária ou inaplicável. Joaquim Barbosa se esquece de ficar
triste com essa situação e de decretar seu luto imperial.
Por exemplo, o STF ainda não julgou as ações feitas por correntistas de
poupança contra planos econômicos, alguns da década de 1980. Tal julgamento tem
sido sucessivamente adiado. Triste. Quem sabe, semana que vem?
É triste, por exemplo, a demora do STF em julgar a Lei do Piso salarial
nacional dos professores. Nada acontece com prefeitos e governadores que se
recusam a pagar o piso salarial, enquanto o Supremo não decide a questão. Até
agora, o assunto sequer entrou em pauta. Triste.
Muito mais triste foi a tarde em que auditores fiscais do trabalho,
procuradores do trabalho, militantes de direitos humanos, sindicalistas e até o
ministro do Trabalho, Manoel Dias, se reuniram em frente ao Supremo para chorar
pelos dez anos de impunidade da Chacina de Unaí-MG.
Fazendeiros acusados da prática de trabalho escravo contrataram
pistoleiros que tiraram a vida de quatro funcionários do Ministério do Trabalho
que investigavam as denúncias.
Nenhum dos ministros cheios de arroubos com o suposto crime de
quadrilha esboçou tristeza igual com a impunidade de um crime de assassinato.
Até o momento, aguardamos discursos inflamados contra esse crime que
envergonha o país, acobertado por aberrações processuais judiciárias, uma delas
estacionada no STF.
Quilombolas e indígenas: que esperem sentados?
Tristes foram também os quase cinco anos que o Supremo demorou para
simplesmente publicar o acórdão (ou seja, o texto definitivo com a decisão
final tomada em 2009) sobre a demarcação da reserva indígena de Raposa Serra do
Sol (RR). Pior: ao ser publicado, o STF frisou que a decisão não serve de
precedente para outras áreas. Triste.
Faltou ainda, a Joaquim Barbosa e a outros ministros inflamados, uma
mesma tristeza, uma mesma indignação e um mesmo empenho para que o STF decida,
de uma vez por todas, em favor da demarcação de terras quilombolas.
Seus processos, como tantos outros milhares, aguardam julgamento.
Uma Ação Direta de Inconstitucionalidade foi ajuizada pelo DEM contra o
decreto do presidente Lula, de 2003, que regulamentava a identificação, o
reconhecimento, a delimitação, a demarcação e a titulação das terras ocupadas
por essas comunidades que se embrenharam pelo interior do território nacional
para fugir da escravidão.
Por pouco não se deu algo ainda mais escabroso, pois o ministro relator
de então, Cezar Pelluso, havia dado razão aos argumentos do DEM impugnando o
ato.
A propósito, na mesma tarde em que o STF julgou e afastou a imputação
do crime de quadrilha aos réus da AP 470, o mesmo Joaquim Barbosa impediu a
completa reintegração de posse em favor dos Tupinambás de Olivença, Bahia.
A área dos índios estava sendo reconhecida e demarcada pela Funai.
Joaquim Barbosa, tão apressado em algumas coisas, achou melhor deixar para
depois. Ora, mas o que são uns meses ou até anos para quem já esperou tantos
séculos para ter direitos reconhecidos?
Realmente, mais uma tarde triste para o Supremo.
Apesar de você
A célebre música de Chico Buarque, "Apesar de você", embora
feita na ditadura, ainda cai bem para enfrentarmos descomposturas autoritárias
desse naipe.
Diz a música, entre outras coisas:
"Hoje você é quem manda
Falou, tá falado
Não tem discussão"
"Você que inventou a tristeza
Ora, tenha a fineza
De desinventar"
"Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia".
(*) Antonio Lassance é cientista político.
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