terça-feira, 7 de abril de 2015

Outro mundo necessário

    Boaventura de Sousa Santos

    Outro Mundo Necessário

    A verdade é que o mundo está hoje mais violento, mais injusto e mais desigual e o Fórum Social Mundial une os movimentos sociais para pensarem em alternativas.

    Escrevo de Túnis, onde participo no Fórum Social Mundial que se realiza pela segunda vez consecutiva no país que iniciou a “primavera árabe”, uma semana depois do atentado terrorista que matou 21 pessoas. O primeiro fato notável é que mais de 50.000 mil participantes, vindos de 121 países, não se deixaram intimidar pelos extremistas e mantiveram a sua participação como testemunho de solidariedade para com o povo tunisiano, o país do Magreb que realizou com mais êxito a transição da ditadura para a democracia. Um país pobre em recursos naturais, cuja maior indústria é o turismo, está no centro de uma região que serviu de berço ao capitalismo e sempre foi dominada pelo comércio de recursos estratégicos, do ouro no século XIV ao petróleo nos nossos dias. A riqueza da sua diversidade cultural é impressionante, e está presente tanto na arte e na política, como na sociedade e no quotidiano. Aqui se amalgamaram ao longo de séculos a cultura cartaginesa (povos berberes e fenícios), romana, cristã, árabe-muçulmana (do Médio Oriente e da Península Ibérica), otomana, francesa. Aqui nasceu e escreveu um dos fundadores das ciências sociais modernas, Ibn Khaldun, (1332-1406). Dez séculos antes, bem perto daqui, na Hipona romana (hoje a cidade de Annaba na Argélia) nascera Santo Agostinho, para além de tudo o mais, um autor precoce do modernismo utópico e da crítica anti-colonial. Hoje, e talvez para surpresa de muitos, as mulheres são 31% dos deputados no parlamento tunisino e, segundo os observadores mais atentos, são as mulheres quem tem defendido mais eficazmente a transição democrática na Tunísia. É, pois, difícil escapar à magia deste lugar.

    Tal como no primeiro encontro do FSM realizado em Túnis, em 2013, o tema central foi a dignidade, um conceito amplo e de vocação intercultural onde cabem os direitos humanos de raiz ocidental e as concepções de respeito pelo ser humano, suas comunidades e a própria natureza concebida como um ser vivo e fonte de vida próprias das cosmovisões indígenas e camponesas, bem como do Islão corânico. Dentro deste tema geral couberam os mais diversos debates sobre as três fontes principais da dominação e da opressão no nosso tempo – capitalismo, colonialismo (racismo, xenofobia e islamofobia) e patriarcado – debates que ora se centraram na denúncia, ora na proposta de alternativas. Ao longo dos quinze anos do FSM alguns temas foram ganhando mais centralidade: o avanço aparentemente irresistível da versão mais anti-social do capitalismo (o neoliberalismo assente no capital financeiro), atingindo agora a Europa que se julgava protegida; a escandalosa concentração de riqueza – segundo dados da respeitada Oxfam, as 85 pessoas mais ricas do mundo têm tanta riqueza quanto a metade mais pobre a humanidade (3,5 mil milhões de pessoas); a destruição ambiental devido à exploração sem precedentes dos recursos naturais; a expulsão de camponeses das suas terras ancestrais para dar lugar à agricultura industrial e ao açambarcamento de terra em larga escala que ela envolve; a crescente invasão de sementes transgénicas e de produtos geneticamente modificados (da fruta ao eucalipto) que retira aos agricultores o controle das sementes, destrói a biodiversidade, mata as abelhas e causa danos à saúde humana; o crescimento da violência política e a necessidade de denunciar tanto o terrorismo como o terrorismo de Estado, que sempre tem recorrido a extremistas para prosseguir os seus fins; o trágico agravamento das condições de vida dos palestinianos sujeitos à forma mais violenta e selvagem de colonialismo por parte do estado de Israel; a luta heroica do povo saharaui pela sua independência e libertação do colonialismo marroquino.

    Quinze anos depois do primeiro encontro do FSM é tempo de fazer um balanço. O FSM permitiu aos movimentos sociais de todo o mundo conhecerem-se melhor e articularem as suas lutas, de que os melhores exemplos serão talvez a Via Campesina e a Marcha Mundial da Mulheres. Mas a verdade é que o mundo está hoje mais violento, mais injusto e mais desigual, e muitos (eu próprio incluído) pensam que o FSM se devia ter renovado ao longo destes anos e tornado mais interventivo na formulação de propostas e de políticas. Uma coisa é certa, o FSM tem vindo a demonstrar que, mesmo se alguns duvidam de que um outro mundo é possível, um outro mundo é urgentemente necessário.

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