A austeridade seletiva da PEC 55 e da reforma da Previdência
As propostas do governo para aposentadoria e os gastos fustigam os pobres, mas deixam os rentistas a salvo
ANPR
Mais trabalho, renda menor. Assim será o futuro
A política de austeridade defendida pelo governo como única alternativa para recuperar a economia, concentrada nas Propostas de Emenda Constitucional 55, do Teto de Gastos, e 287, da Reforma da Previdência, sacrifica os pobres e protege os rentistas, apontam economistas. A escolha ignora opções menos danosas à sociedade adotadas no Brasil e no resto do mundo.
A PEC 287, encaminhada ao Congresso na terça-feira 6, completa a exclusão das parcelas mais vulneráveis da população pela PEC 55. A proposta eleva a idade mínima de aposentadoria dos trabalhadores para 65 anos, o tempo mínimo de contribuição a 25 anos e condiciona o benefício máximo integral a 49 anos de recolhimento, entre outros dispositivos.
“Foi feita para pouquíssimos acessarem o benefício. A maioria contribuirá e não usufruirá. Estender de dez para 25 anos o tempo de contribuição exigido para se aposentar e condicionar a aposentadoria integral a 49 anos de contribuições é abusivo”, define a economista Denise Gentil, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
No futuro, diz, os brasileiros viverão menos, pois suas vidas serão mais precárias. Na melhor situação, não mais ganharão a média só dos salários mais altos, mas da totalidade dos proventos e isso reduzirá a 76% a aposentadoria integral atual. Terão pior saúde e maior deterioração nas suas capacidades de trabalho, por permanecerem em atividade durante um período mais longo.
Contribuirão por mais tempo e usufruirão por um intervalo mais curto. “A aposta do governo Michel Temer é de que poucos se aposentarão e, desses, pouquíssimos viverão por algum tempo usufruindo o benefício.”
Além de encaminhar a PEC 287, o Executivo, diante de pressões pela queda mais rápida dos juros e boatos de substituição da cúpula da área econômica, acenou com medidas vistas até por economistas conservadores como meros paliativos para a crise.
As medidas são a retirada de obstáculos aos investimentos, a utilização de bancos públicos na renegociação de dívidas e o direcionamento do crédito para a habitação. Baixar os juros seria mais eficaz para estimular a produção, a criação de empregos e o aumento das contribuições à Previdência, mas reduz os lucros dos rentistas credores da dívida pública.
“A austeridade no País é seletiva, vale só para os trabalhadores, funcionários e aposentados, obrigados a pagar a conta. Poupa os rentistas, pois está fora de questão baixar significativamente os juros que remuneram os credores da dívida pública e demais aplicações financeiras. Preserva também os empresários, dispensados de devolver as isenções tributárias”, acusa o economista Pedro Cezar Dutra Fonseca, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
“Os rentistas receiam que o aumento dos gastos sociais e do déficit torne o Estado inadimplente no longo prazo e querem ter certeza de que receberão seus rendimentos. Os cortes mostram que, daqui a 10 ou 20 anos, o governo conseguirá honrar o que hoje pede emprestado ao mercado financeiro.”
A administração Temer insiste na austeridade, apesar do seu completo fracasso no mundo desde 2008, exceto para o setor financeiro, segundo dados da Organização das Nações Unidas. O ajuste fiscal e a criação de dinheiro novo pelos bancos centrais não estimularam o investimento.
O crescimento médio dos países desenvolvidos caiu 54%. As instituições financeiras puderam manter seus recursos no Fed livres de risco e subsidiados pela remuneração da taxa de juros. “A austeridade e o quantitative easing pioraram as coisas. Em 17 das maiores economias, o investimento permaneceu abaixo das taxas alcançadas no período anterior a 2008”, contabilizam os economistas Joseph Stiglitz e Hamid Rashid. “O risco de outra crise não pode ser ignorado.”
Bastaria a equipe econômica do governo examinar os dados da Grã-Bretanha, a mais ferrenha adepta da austeridade, para constatar o efeito ruinoso dessa política. A economia do país cresceu 0,5% no trimestre encerrado em setembro, abaixo do 0,7% dos três meses precedentes.
O Escritório de Responsabilidade Orçamentária concluiu no ano passado que a política de cortes reduziu o crescimento do PIB em 2% de 2010 a 2012, elevando o seu custo acumulado a 5% do PIB. O economista Simon Wren-Lewis, da Universidade de Oxford, estima um custo maior, de ao menos 15% do PIB.
“Essa política não é a solução para os enormes problemas deixados pelo experimento neoliberal. Há amplo reconhecimento de que falhou, mas os números não contam a pior parte da história: o medo, a incerteza, o desemprego, os padrões de vida mais pobres e o desmantelamento do nosso Estado de Bem-Estar Social”, atesta Steve Hart, dirigente da central trabalhista britânica Unite Politics.
Em 2012, afirma, o banco de cestas básicas Trussell Trust alimentou 347 mil cidadãos, incluídas 127 mil crianças. Segundo a Oxfam, 500 mil dependem de doações regulares de alimentos. “Não é algo que se espera no cotidiano do quinto país mais rico do mundo.” Entre 2015 e 2016, o Trussell Trust forneceu 1,11 milhão de suprimentos alimentares “para pessoas em crise”, divulgou a própria instituição.
Enquanto isso, no Rio de Janeiro, 13 dos 15 restaurantes populares estaduais foram fechados em consequência da crise financeira e da austeridade nos gastos. No auge, ofereceram 1,13 milhão de refeições por mês.
O governo Temer não leva em conta também as alternativas adotadas com sucesso no próprio País para combater o aumento do endividamento público. O ex-presidente Getúlio Vargas enfrentou o crescimento do déficit e a crise seriíssima do balanço de pagamentos herdados do antecessor, Eurico Gaspar Dutra, com medidas que resolveram o problema sem comprometer o crescimento de longo prazo, sublinha Fonseca.
Encaminhou uma proposta de aumento de impostos e corte de despesas para preparar o crescimento e montou uma assessoria de economistas desenvolvimentistas dedicada ao pensamento estratégico do País. “Em dois anos, o problema estava resolvido.”
A situação provocada por gastos elevados e arrecadação em queda durante a administração Juscelino Kubitschek foi combatida anos depois pelo governo militar de Humberto de Alencar Castello Branco com o Programa de Ação Econômica, adotado entre 1964 e 1967.
Contemplava uma proposta de contenção do déficit público, mas não inviabilizou a economia. Ao contrário, a implantação de reformas tributária e financeira foi seguida por um período de crescimento, o chamado “milagre econômico”.
O problema do governo Temer, segundo o professor da UFRGS, é uma austeridade que se esgota em si mesma. “A retórica de que fará a economia crescer é um absurdo, inclusive porque todo o resto da política econômica conspira contra. Não existe crescimento por geração espontânea.”
Não é preciso inventar. O enfrentamento exitoso de crises fiscais e econômicas conta com amplo e confiável registro, à disposição de quem quiser. “Oitenta anos de estudos podem não ter produzido um acordo universal sobre os efeitos das políticas do New Deal, mas geraram amplo consenso sobre o que funcionou e quais medidas foram mais importantes”, concluiu o economista Barry Eichengreen, da Universidade da Califórnia sobre as respostas do governo dos Estados Unidos às crises dos anos 1930 e 2008.
O expansionismo fiscal, os instrumentos que colocaram dinheiro no bolso dos consumidores, como o Bônus de Veteranos de 1936, e as taxas de empréstimos muito baixas para financiar projetos de infraestrutura tiveram bons resultados. Nos últimos anos, o estímulo de Barack Obama teve efeito, mas daria resultados melhores se os formuladores de políticas tivessem sido mais ousados, conclui o professor.
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