O escândalo da democracia!
“Eu, Cláudio Melo Filho, delator”. Esse poderia ser o título de um novo gênero literário no Brasil que vai desafiar o cânone. A delação premiada. Uma literatura político-administrativa de alta voltagem, pedagógica e perturbadora escrita na primeira pessoa do singular pelos executivos das grandes corporações brasileiras, detalhando, com espantosa verossimilhança, tudo o que parecia uma ficção política delirante, uma cena sem crime, um surto persecutório coletivo.
E entretanto: “É Tudo Verdade!” Poderia ser o título geral desse tomo inicial. Mas a pergunta que me parece ainda mais escandalosa do que qualquer afirmação ou prova trazida nas delações é: “Quanta verdade um país é capaz de suportar?”
A delação de Cláudio Melo Filho é apenas a primeira de um total de 77 acordos de delação firmados pela Operação Lava Jato com funcionários e dirigentes da Odebrecht. Outras empreiteiras e empresas ainda virão!
Como em um romance proustiano em busca de um lastro perdido, a operação Lava Jato produz uma sangria desatada e sem controle e finalmente se volta (mesmo que tardiamente) para aqueles que manipularam o próprio golpe parlamentar e impeachment ilegítimo contra a Presidente da República do Brasil.
Afinal, a ex-presidenta Dilma Roussef foi deposta por meios “legais” e ilegítimos simultaneamente. E o grupo do PMDB que a destituiu se torna agora o centro dos escândalos de corrupção. E a tormenta ainda não desabou!
A crise mais radical apenas se avizinha. A máquina do mundo corporativo se escancara em praça pública e mostra seus dentes: a mais íntima e simbiótica relação entre o empresariado brasileiro e o sistema político.
A rede
E o que vislumbramos nessa primeira delação? Primeiramente “a rede”. Como todos sabiam, mas agora se torna palpável, a corrupção é um sistema organizado. E extremamente eficaz dentro das empresas com suas planilhas impecáveis, codinomes, valores e executivos destacados especialmente para um serviço especializado: tratar das “relações institucionais” entre as empresas e quem faz e executa as leis, quem governa o país e faz a partilha do bem comum.
Na lapidar e irretocável definição do delator, “o propósito da empresa, assim, era manter uma relação frequente de concessões financeiras e pedidos de apoio com esses políticos, em típica situação de privatização indevida de agentes políticos em favor de interesses empresariais nem sempre republicanos”.
Está também é a história de MT, Decrépito, Angorá, Boca Mole, Caju, Velhinho, Gripado, Ferrari, Carangueijo, Todo Feio, Santo, Missa, Misericórdia, Mineirinho e de uma infinidade de outros parlamentares, prepostos, mandatários, gerentes, operadores identificados por codinomes hilários.
Uma comicidade trágica, já que respondem também pelos cargos de Presidente da República Federativa do Brasil, Presidente do Senado, Presidente da Câmara dos Deputados, Senadores, parlamentares de todos os partidos políticos, presidentes, diretores de empresas, empresários, executivos, bancários, banqueiros, ordenadores de despesas. Toda uma malha sem bordas!
Um mesmo negócio
Uma só rede com inumeráveis ramificações, intrincada, complexa, maleável que explicita quem são os agentes e atores que mandam no Brasil. E como a “elite do dinheiro” e as corporações (sejam empreiteiras, bancos, corporações de mídia, corporações de educação, empresários, os donos do dinheiro, tratam os parlamentares e outros agentes (mídia, judiciário, etc.) como seus mero operadores, numa “parceria” público/privado gestada para predar o bem comum.
Meu lobby será tua herança!
Uma das primeiras informações que o executivo da Odebrecht, Cláudio Melo Filho, dá sobre sua trajetória já diz muito do sistema de “cumpadrio”, do capitalismo tupiniquim e global, com “herdeiros” de cargos, de privilégios, herdeiros de uma rede de relações pessoais. Além de dinheiro as famílias da elite do dinheiro deixam uma “network” que vale milhões:
“Passei a ocupar o cargo de diretor de relações institucionais da Odebrecht S.A, em razão da ocorrência de um sério problema de saúde que impediu que o meu pai, Claudio Melo, pudesse continuar trabalhando na sua função.”
Ao longo do depoimento, Cláudio Melo Filho vai demonstrando como estava a altura da herança deixada pelo pai no cargo de lobista em Brasilia, fazendo florescer os negócios do que nomeia ao longo do texto de “minha empresa”, numa relação de dedicação à Odebrecht que mistura sem pudor ócio e negócios, afetos familiares e predação empresarial, o público como mera extensão de interesses corporativos e privados.
O negócio da corrupção e dos corruptores é uma transação afetiva, comunicacional, profundamente enraizada no modelo patriarcal açambarcador do bem comum. As benesses da máfia, família, clã, são estendidas aos que se assujeitam às regras de “fidelidade” e são presenteados, para além das contribuições financeiras, negociadas oficialmente e no caixa 2 das campanhas políticas, com relógios, mimos, deferências, salamaleques.
A corrupção produz laços sólidos. E Cláudio Melo Filho faz questão de destacar como os limites se borram entre os agentes da empresa e do estado nas relações com Geddel, Moreira Franco, Eduardo Cunha. Amizades, parentescos, afinidades, que evidentemente tinham um preço e eram monetizadas e transformadas em vantagens para os dois lados:
“Apesar dos pagamentos frequentes, sempre me disse [Geddel] que poderíamos ser mais generosos com ele. Geddel sempre me dizia que se considerava um ‘amigo da empresa’ e que isso precisava ser mais bem refletido financeiramente.”
O ex-diretor da Odebrecht também fala sobre a proximidade com Moreira Franco, conhecido pelo codinome Angorá: “Eu conheço Wellington Moreira Franco há muitos anos, pois possuo parentesco distante com ele”.
Em outro trecho, conta como a cúpula do PMDB atua para aprovar uma Emenda Parlamentar de interesse da Odebrecht, com um Eduardo Cunha fazendo visitas íntimas na madrugada para conspirações:
“Vencemos na comissão. Pancadaria geral!!! Perdi uma emenda que atendia a Agro, uma empresa da Odebrecht. Segue agora à tarde para o plenário, devendo ser votada amanhã. Seguindo para o Senado. Ontem, o Carang (Caranguejo, o codinome de Cunha) chegou em minha casa à 00:45…pode imaginar isso!!!?? Dona Cláudia quase me mata!!! Vamos em frente!!!”
Caça talentos
Outra questão que surpreende é o trabalho prospectivo dos lobistas das corporações caçando “talentos” promissores entre os parlamentares:
“Valendo-me da situação, percebi que deveria selecionar determinados agentes com relevância política e que teriam melhores condições de gerar resultados positivos para a minha empresa.”
Pouco importa o partido. Pouco importa o viés ideológico, na bolsa de apostas todos os parlamentares são virtuais cooptadores/cooptados.
“Adicionalmente, busquei identificar e apoiar políticos promissores, que, além de defender projetos de interesses convergentes, demonstram capacidade de exercer liderança no Congresso e nos respectivos partidos, passando, portanto, a figurar na lista de políticos estratégicos.”
A Corrupção será planilhada
Nas lições primorosas de gerenciamento dos “recursos humanos” recrutados, os parlamentares passam pelo crivo de “qualidade” de Cláudio Melo Filho, e das corporações que montam um sistema exaustivo de monitoramento das agendas do legislativo, judiciários, executivo. Atuam em Brasília de forma sistemática e organizada:
“Para desenvolver a nova função que havia assumido, procurei montar uma boa equipe e por em prática desenvolvimento de uma agenda de acompanhamento legislativo qualificado.”
A disputa é feita de forma sistemática, hierarquizada, com tráfico de influência, distribuição de dinheiro e compra de resultados favoráveis as corporações.
A sociedade desorganizada tem obviamente menos chances de disputar as pautas do Congresso com os lobistas profissionais. Quantas pautas, Projetos de Leis, Emendas Parlamentares, Mediadas Provisórias, Audiências Públicas, Notas Técnicas etc. a sociedade civil consegue monitorar e ter incidência?
Para isso é preciso tempo, recursos, rede de relações. Muitos movimentos sociais, Ongs, ativistas já entenderam o poder da atuação e da pressão diretamente no Congresso, disputando Brasília. Mas trata-se de um a disputa assimétrica e desigual. Daí o poder das ruas e insurgências ou a utilização estratégica das novas formas de pressão midiativistas, por meio das redes sociais, abaixo assinados, envio massivo de e-mails, escrachos, numa tentativa de fazer frente ao lobby organizado das corporações. Mas se trata de uma disputa desigual!
Quanto custa manter lobistas em Brasília? Quanto custa manter, bancar e incidir na bancada das empreiteiras, do agronegócio, das telecomunicações, dos rentistas, da educação privada, combater as distorções e financeirização da saúde, os interesses das empresas de assistência médica, da indústria farmacêutica, os interesses dos ruralistas, da mídia corporativa, a extensa gama de corporações que exploram e lucram com a financeirização da vida?
Como poderemos olhar para o voto de cada parlamentar que vai decidir sobre a PEC55, a PEC que congelará por 20 anos os investimentos sociais, ou a Reforma da Previdência que condena os brasileiros a trabalhar por 50 anos, sem vislumbrar todos os lobbys em torno dessa gestão da vida e da morte? Como mapear e identificar esses poderes que cresceram na sombra?
Quando o ex-executivo da Odebrecht, Cláudio Melo Filho, descreve sua relação de íntima e proveitosa convivência com o Senador pmdebista Romero Jucá, deixa escancarado os termos do negócio.:
“ A forma como tratei os temas que relato a seguir era fundamentada em uma certeza: todo apoio desenvolvido pelo Senador [Romero Jucá], teria, nos momentos de campanha, uma conta a ser paga. As insinuações não deixavam dúvidas de que no momento certo eu seria demandado pelo parlamentar.”
De forma didática o informante destrói a linha fictícia, para os objetivos da corporação, entre pagamentos feitos oficialmente ou por caixa 2. Tudo é compra de benefícios para a empresa:
“De forma clara e objetiva: eu e o Senador tínhamos a convicção de que os apoios aos pleitos da empresa seriam posteriormente equacionados no valor estabelecido para contribuição a pretexto de campanha eleitoral, fosse ela realizada de forma oficial ou via caixa 2.”
E mostra que cada decisão parlamentar tem um preço: “Essas contribuições eleitorais eram medidas, definidas e decididas de acordo com a relevância dos assuntos de nosso interesse que tinham sido defendidos pelo parlamentar.”
Tudo está consumado, poderíamos concluir! Como fazer a passagem de um modelo viciado e vicioso, o sistema da corrupção da democracia para um outro sistema? Como desembarcar uma casta entranhada no Parlamento, em Brasília, nas prefeituras, nos Estados, nas corporações, nas instituições, dentro da máquina do Estado? Se a elite do dinheiro tomou o Estado de assalto e este se rendeu às formas de privatização do bem comum, como disputar a máquina por dentro e por fora do Estado? Como começar as experiências de democracia direta, para além da crise dos mediadores políticos e das práticas privatizantes das corporações?
A cena mais forte, descrita por Cláudio Melo Franco, mostra o então vice-presidente de Dilma Roussef, Michel Temer negociando recursos para seu próprio partido, o PMDB, em pleno Palácio do Jaburu sentados “na varanda em cadeiras de couro preto, com estrutura de alumínio”, fazendo uso não apenas da máquina do Estado, mais de seu simbolismo para fins privados, partidários, aparelhando cargos, símbolos, autoridade:
“No jantar, acredito que considerando a importância do PMDB e a condição de possuir o Vice-Presidente da República como Presidente do referido partido político, Marcelo Odebrecht definiu que seria feito pagamento no valor de R$ 10.000.000,00. Claramente, o local escolhido para a reunião foi uma opção simbólica voltada a dar mais peso ao pedido de repasse financeiro que foi feito naquela ocasião.”
Essa é apenas uma das histórias de uma corporação que compra pareceres, monitora novas lideranças parlamentares, elege políticos, direciona leis, interfere em votações no Congresso, participa de agendas governamentais, dentro e fora do Brasil, e agora em um processo da chamada “justiça negocial” também negocia cada delação. Não existe nada fora de negócios!
Os golpistas do PMDB são citados em operações de cerca de 22 milhões em um só capítulo das delações da Lava jato: Michel Temer, Jucá, Renan Calheiros, Eliseu Padilha, Geddel, Moreira Franco, Eduardo Cunha, Fiesp, empreiteiras. Todos juntos contra os interesses sociais. Nessa nova leva ainda não foram publicizadas (ou se encontram obstruídas) as narrativas envolvendo os parlamentares PSDB e o PT aparece de forma pontual nesses primeiros relatos.
Chegamos em um ponto sem retorno
Em um primeiro momento a tentação é passar uma régua que diz “são todos iguais”, mas a base social a que respondem cada um desses partidos não é a mesma e nem os seus distintos projetos de poder. Como fazer tábula rasa?
As contradições do neodesenvovimentismo petista permitiram uma brecha, uma franja que André Singer sintetiza desta forma, apontando a esquizofrenia do projeto petista no que sintetizou serem “As Contradições do Lulismo” que o diferenciam, mesmo com todos os erros, de um projeto puramente privatizante e liberal:
“Inclusão social sem cidadania, reindustrialização com oposição dos industriais, assalariamento precário com acesso à universidade, ampliação do crédito educacional com crescimento do ensino superior privado, wallmartização do trabalho com internacionalização dos sindicatos, agroecologia com agronegócio, autonomização dos mais pobres com passividade assistencialista, emancipação cultural com empreendedorismo, esperança de inclusão com rebaixamento das expectativas.”
O fato é que chegamos em um ponto de “não-retorno”, de ruptura, seja para o PT, seja para a democracia brasileira, diante de um projeto que foi simultaneamente encantatório e frustrante.
O limite da democracia no Brasil emerge cambaleante desse diário de corruptores/corrompidos, subornadores/subornados, prepostos, lobistas, parlamentares e empresários chantagistas, executivos dedicados à rapina. Não é uma literatura edificante, mas se trata de um tratado assombroso sobre a formação política no Brasil.
Nesse momento em que o país mergulha na descrença. “Eu perdi a fé, que enfermidade mais terrível!”, todo brasileiro deveria ler as 82 páginas desse tratado sobre a corrupção consentida. Teremos que ler e reler toda essa literatura emergente em busca “do tempo perdido”, em busca de um reencantamento da política, em busca de um outro escândalo, virtuoso, insurgente, radical, que nos faça crer na democracia!
Leia o documento na íntegra aqui.
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Fonte: CULT
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