Jessé Souza: 'A origem dos brasileiros é escravocrata, não de corruptos'
Quando conversei com o sociólogo Jessé Souza, na sexta-feira (13), ele ainda era presidente do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea). O mandato da presidente eleita Dilma Rousseff estava para ser suspenso por decisão do Senado e, é claro, Jessé seria substituído assim que o processo se consumasse.
Crítico contumaz de todo o procedimento que terminou dando a posse da presidência a Michel Temer, Jessé Souza acaba de escrever um livro, que intitulou “Radiografia do golpe”, a ser lançado em julho. O sociólogo, que na sua bibliografia tem “Os Batalhadores Brasileiros” e “A Ralé brasileira”, importantes pesquisas analíticas sobre classes no Brasil, faz uma revisão histórica e ataca fortemente a teoria do senso comum, que diz que os brasileiros herdaram dos portugueses o tino pela corrupção. Para ele, trata-se de uma história montada, falsa, para produzir efeitos. Tem a ver com a demonização do estado.
“O que nós temos é um projeto dominante que foi a escravidão”, afirma ele. É a partir dessa origem escravocrata que se pode explicar, segundo Jessé, a indiferença da classe média com os pobres. E, por consequência, a antipatia com um governo que teve seu programa voltado para ajudar as classes menos favorecidas. Foram quase duas horas de conversa que eu reproduzo abaixo:
O que é possível refletir sobre o momento que a nossa sociedade está vivendo, com posições políticas tão divididas, com tanta falta de esperança?
Jessé Souza – A realidade é muito confusa e é por conta disso que as pessoas são enganadas. A partir da confusão é possível manipular. Estou terminando agora um livro que estou chamando de “Radiografia do Golpe”, onde coloco isso. Há a confusão de todas as coisas, e a mídia é importante para isso. Também quis montar esse livro como uma contraparte ao ensaio do historiador Sergio Buarque de Holanda. Ele instaura uma autocompreensão sobre o Brasil que passa a ser naturalizada e foi passada adiante para todas as escolas, universidades. Todas as gerações passaram a aprender que o país é fruto da corrupção que veio de Portugal etc. Escrevi este livro para mostrar o quanto isso é bobagem, teoria que não resiste a um peteleco.
Por quê?
Jessé Souza – A ideia da corrupção só é razoável quando se tem a soberania popular instaurada, porque aí se tem um público a quem roubar. No século XIV as terras eram do rei, não tinha como roubar. Essa história falsa, de que nascemos e fomos moldados pelos corruptos, nasceu em 1932, quando São Paulo perdeu o Estado e quis construir a nova elite intelectual. Sergio Buarque é um grande nome dessa história, em 1936. Sua teoria tem a ver com a demonização do estado, quando ele é ocupado pelos seus inimigos de classe. E tem a ver também com o desejo de montar a ideia de que o mercado é a maior virtude. Como se os Estados Unidos fossem uma criação apenas do mercado, o que não é verdade. Aliás, nenhum capitalismo do mundo é montado apenas pelo mercado, isso é uma mera ideologia para que quem domina o mercado possa dominar também o orçamento do estado, as empresas do estado: você vende o produto de gerações de trabalho de de brasileiros e bota no bolso de meia dúzia.
Qual a nossa verdadeira origem?
Jessé Souza - As pessoas são montadas, criadas, pelas instituições, e isso é fácil provar. E a instituição básica no Brasil foi a escravidão. Mas o Brasil nunca criticou a sua herança escravocrata. Ela foi, inclusive, encoberta por essa pseudohistória absurda de que nós viemos dos corruptos de Portugal. Quando Rui Barbosa disse: vamos queimar os papéis da escravidão, ele contribuiu para esse esquecimento. É importante repetir sobre isso porque se um povo não tem memória, ele não reflete sobre o que ele é, de que maneira que a história foi feita. Mas isso é feito com um sentido, para que a gente nunca saiba quem a gente é, quem manda na gente e de que modo manda.
Lado a lado com a desesperança, o que se observa nas ruas é também um sentimento de ódio...
Jessé Souza - A elite não odeia os pobres, ela tem uma indiferença blasé, quer o dinheiro dela e pronto. Mas uma parte da classe média tem,sim, uma relação de ódio com o pobre. Mas a classe média é muito heterodoxa. É muito interessante isso. Uma parte da classe média tem o mesmo mecanismo de todo o movimento de extrema direita. Ela sente medo, e esta é, talvez, a emoção mais importante na política porque éirracional, pode ser manipulado.
Medo de quê?
Jessé Souza - A mera ascensão de classes populares entre nós, como todo mundo sabe, causou incomodo em muita gente. O principal racismo no Brasil não é de raça, é de classe. Essa classe média estava incomodada com a divisão de espaços sociais, que não era mais entre escravos e senhores, havia escravos em todos os lugares. E se ela percebe que os pobres agora estão dividindo espaços, qual o próximo passo? Que eles roubem os empregos, aí é o maior medo. Sem perceber essa perversidade, a gente não entende o Brasil. A moralidade, o “combate à corrupção”, deu um discurso pseudo racional para essa parte fascista da classe média. Eles agora ganharam um discurso: não são contra a desigualdade, mas pegaram a bandeira que pode se comparar a isso, que é a luta pela corrupção. Isso construiu a base social do golpe, foi decisivo. O governo não conseguiu se contrapor a isso. O tema da corrupção entre nós é o que faz o brasileiro imbecil. Eu queria dedicar minha vida a fazer com que o brasileiro, ao ouvir essa historinha da corrupção, começasse a sentir o cheiro de fedor no ar. Mas é muito difícil.
Apesar de o governo ter tido políticas públicas voltadas a melhorar a vida dos mais pobres, as comunidades periféricas, as favelas, não estiveram presentes em nenhum tipo de manifestação. Por quê?
Jessé Souza – Os mais pobres são conservadores, e isso é assim no mundo todo. A primeira classe que conseguiu se organizar foi a classe trabalhadora, e tem um ótimo livro que fala sobre isso, de E P Thompson, que se chama “A construção da classe operária”. Os oprimidos são oprimidos pela alma, têm medo de qualquer mudança porque pode ser para pior. O que Lula fez foi histórico, mudou uma classe. Onde eram os grotões do PFL ele transformou em base da esquerda. Quando, no segundo governo Dilma, ela perdeu a batalha, tentou se voltar para o esquema de compromisso com os ricos, como Lula tinha feito, mas era tarde. Ela até nomeou o ministro da Fazenda que o Bradesco tinha indicado, tentando se aproximar e fazer um jogo duplo. Foi desastroso porque perdeu uma elite que já não tinha, e a base popular. Se ela tivesse continuado e tivesse sido expulsa do governo porque estava levando avante um projeto popular, acho que muita gente iria descer dos morros para se manifestar. Mas esse pessoal se sentiu abandonado e uma parte assumiu o discurso da corrupção porque eles estavam começando a perder economicamente, com o desemprego. O eleitor médio não sabe como funciona o mundo.
O que podemos esperar do futuro para um país que tem um presidente interino e outra que está sendo julgada...
Jessé Souza – É preciso que a esquerda seja muito incompetente para perder as eleições em 2018. Se prenderem Lula vai ser uma burrice maior porque ele vai virar mártir. Não tem caminho fácil, as coisas não estão dadas. Tem uma parte da classe média que é crítica, de esquerda, e que pode aumentar. Tem também o pessoal que foi iludido, que foi para as ruas defender a saída da presidente porque pensava estar combatendo a corrupção. E vai perceber que não é isso que aconteceu.
Pensando em termos globais, você acha que o ecosocialismo pode ser uma saída, como alguns acreditam?
Jessé Souza – Isso é uma bobagem. Socialismo é de uma ingenuidade enorme, nunca vai acontecer. O capitalismo, em termos filosóficos, se acopla ao dado humano mais fundamental que é a ganância e consegue engolir todas as bandeiras. Na verdade, é o afastamento da ganância que gera um sentimento de solidariedade e uma reflexão.
Qual o caminho, então?
Jessé Souza – Houve capitalismos extremamente humanos, como na Alemanha na década de 80. Não tinha pobres nas ruas, os desajustados ganhavam 900 marcos para não passar fome, os remédios custavam 1 euro e você tinha escola pública da melhor qualidade, além de uma imprensa com canais públicos. Agora existe uma face mais perigosa, que é o capitalismo financeiro. Mas tem uma frase que gosto muito: aonde nasce o perigo, nasce a salvação. Vai ser polarizado, direita e esquerda, e o centro vai deixar de existir.
E quanto ao compromisso com os pobres?
Jessé Souza – Os ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e Lula tinham muitas coisas em comum. Fernando Henrique podia ter feito Bolsa Família e, se tivesse feito,o PSDB ficaria no poder 30 anos. Mas ele não fez por puro desinteresse, porque não tem vínculo afetivo nenhum, essa coisa jamais passou pela cabeça dele. Uma vez ele disse numa entrevista: “Vai existir sempre a turma do sopão”. Esse é o pensamento da nossa elite, mas não de uma elite como a alemã. O compromisso de países como França e Alemanha é: como é que vamos fazer para continuar com o capitalismo mas que não haja a “turma do sopão” nunca mais.
O que é possível refletir sobre o momento que a nossa sociedade está vivendo, com posições políticas tão divididas, com tanta falta de esperança?
Jessé Souza – A realidade é muito confusa e é por conta disso que as pessoas são enganadas. A partir da confusão é possível manipular. Estou terminando agora um livro que estou chamando de “Radiografia do Golpe”, onde coloco isso. Há a confusão de todas as coisas, e a mídia é importante para isso. Também quis montar esse livro como uma contraparte ao ensaio do historiador Sergio Buarque de Holanda. Ele instaura uma autocompreensão sobre o Brasil que passa a ser naturalizada e foi passada adiante para todas as escolas, universidades. Todas as gerações passaram a aprender que o país é fruto da corrupção que veio de Portugal etc. Escrevi este livro para mostrar o quanto isso é bobagem, teoria que não resiste a um peteleco.
Por quê?
Jessé Souza – A ideia da corrupção só é razoável quando se tem a soberania popular instaurada, porque aí se tem um público a quem roubar. No século XIV as terras eram do rei, não tinha como roubar. Essa história falsa, de que nascemos e fomos moldados pelos corruptos, nasceu em 1932, quando São Paulo perdeu o Estado e quis construir a nova elite intelectual. Sergio Buarque é um grande nome dessa história, em 1936. Sua teoria tem a ver com a demonização do estado, quando ele é ocupado pelos seus inimigos de classe. E tem a ver também com o desejo de montar a ideia de que o mercado é a maior virtude. Como se os Estados Unidos fossem uma criação apenas do mercado, o que não é verdade. Aliás, nenhum capitalismo do mundo é montado apenas pelo mercado, isso é uma mera ideologia para que quem domina o mercado possa dominar também o orçamento do estado, as empresas do estado: você vende o produto de gerações de trabalho de de brasileiros e bota no bolso de meia dúzia.
Qual a nossa verdadeira origem?
Jessé Souza - As pessoas são montadas, criadas, pelas instituições, e isso é fácil provar. E a instituição básica no Brasil foi a escravidão. Mas o Brasil nunca criticou a sua herança escravocrata. Ela foi, inclusive, encoberta por essa pseudohistória absurda de que nós viemos dos corruptos de Portugal. Quando Rui Barbosa disse: vamos queimar os papéis da escravidão, ele contribuiu para esse esquecimento. É importante repetir sobre isso porque se um povo não tem memória, ele não reflete sobre o que ele é, de que maneira que a história foi feita. Mas isso é feito com um sentido, para que a gente nunca saiba quem a gente é, quem manda na gente e de que modo manda.
Lado a lado com a desesperança, o que se observa nas ruas é também um sentimento de ódio...
Jessé Souza - A elite não odeia os pobres, ela tem uma indiferença blasé, quer o dinheiro dela e pronto. Mas uma parte da classe média tem,sim, uma relação de ódio com o pobre. Mas a classe média é muito heterodoxa. É muito interessante isso. Uma parte da classe média tem o mesmo mecanismo de todo o movimento de extrema direita. Ela sente medo, e esta é, talvez, a emoção mais importante na política porque éirracional, pode ser manipulado.
Medo de quê?
Jessé Souza - A mera ascensão de classes populares entre nós, como todo mundo sabe, causou incomodo em muita gente. O principal racismo no Brasil não é de raça, é de classe. Essa classe média estava incomodada com a divisão de espaços sociais, que não era mais entre escravos e senhores, havia escravos em todos os lugares. E se ela percebe que os pobres agora estão dividindo espaços, qual o próximo passo? Que eles roubem os empregos, aí é o maior medo. Sem perceber essa perversidade, a gente não entende o Brasil. A moralidade, o “combate à corrupção”, deu um discurso pseudo racional para essa parte fascista da classe média. Eles agora ganharam um discurso: não são contra a desigualdade, mas pegaram a bandeira que pode se comparar a isso, que é a luta pela corrupção. Isso construiu a base social do golpe, foi decisivo. O governo não conseguiu se contrapor a isso. O tema da corrupção entre nós é o que faz o brasileiro imbecil. Eu queria dedicar minha vida a fazer com que o brasileiro, ao ouvir essa historinha da corrupção, começasse a sentir o cheiro de fedor no ar. Mas é muito difícil.
Apesar de o governo ter tido políticas públicas voltadas a melhorar a vida dos mais pobres, as comunidades periféricas, as favelas, não estiveram presentes em nenhum tipo de manifestação. Por quê?
Jessé Souza – Os mais pobres são conservadores, e isso é assim no mundo todo. A primeira classe que conseguiu se organizar foi a classe trabalhadora, e tem um ótimo livro que fala sobre isso, de E P Thompson, que se chama “A construção da classe operária”. Os oprimidos são oprimidos pela alma, têm medo de qualquer mudança porque pode ser para pior. O que Lula fez foi histórico, mudou uma classe. Onde eram os grotões do PFL ele transformou em base da esquerda. Quando, no segundo governo Dilma, ela perdeu a batalha, tentou se voltar para o esquema de compromisso com os ricos, como Lula tinha feito, mas era tarde. Ela até nomeou o ministro da Fazenda que o Bradesco tinha indicado, tentando se aproximar e fazer um jogo duplo. Foi desastroso porque perdeu uma elite que já não tinha, e a base popular. Se ela tivesse continuado e tivesse sido expulsa do governo porque estava levando avante um projeto popular, acho que muita gente iria descer dos morros para se manifestar. Mas esse pessoal se sentiu abandonado e uma parte assumiu o discurso da corrupção porque eles estavam começando a perder economicamente, com o desemprego. O eleitor médio não sabe como funciona o mundo.
O que podemos esperar do futuro para um país que tem um presidente interino e outra que está sendo julgada...
Jessé Souza – É preciso que a esquerda seja muito incompetente para perder as eleições em 2018. Se prenderem Lula vai ser uma burrice maior porque ele vai virar mártir. Não tem caminho fácil, as coisas não estão dadas. Tem uma parte da classe média que é crítica, de esquerda, e que pode aumentar. Tem também o pessoal que foi iludido, que foi para as ruas defender a saída da presidente porque pensava estar combatendo a corrupção. E vai perceber que não é isso que aconteceu.
Pensando em termos globais, você acha que o ecosocialismo pode ser uma saída, como alguns acreditam?
Jessé Souza – Isso é uma bobagem. Socialismo é de uma ingenuidade enorme, nunca vai acontecer. O capitalismo, em termos filosóficos, se acopla ao dado humano mais fundamental que é a ganância e consegue engolir todas as bandeiras. Na verdade, é o afastamento da ganância que gera um sentimento de solidariedade e uma reflexão.
Qual o caminho, então?
Jessé Souza – Houve capitalismos extremamente humanos, como na Alemanha na década de 80. Não tinha pobres nas ruas, os desajustados ganhavam 900 marcos para não passar fome, os remédios custavam 1 euro e você tinha escola pública da melhor qualidade, além de uma imprensa com canais públicos. Agora existe uma face mais perigosa, que é o capitalismo financeiro. Mas tem uma frase que gosto muito: aonde nasce o perigo, nasce a salvação. Vai ser polarizado, direita e esquerda, e o centro vai deixar de existir.
E quanto ao compromisso com os pobres?
Jessé Souza – Os ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e Lula tinham muitas coisas em comum. Fernando Henrique podia ter feito Bolsa Família e, se tivesse feito,o PSDB ficaria no poder 30 anos. Mas ele não fez por puro desinteresse, porque não tem vínculo afetivo nenhum, essa coisa jamais passou pela cabeça dele. Uma vez ele disse numa entrevista: “Vai existir sempre a turma do sopão”. Esse é o pensamento da nossa elite, mas não de uma elite como a alemã. O compromisso de países como França e Alemanha é: como é que vamos fazer para continuar com o capitalismo mas que não haja a “turma do sopão” nunca mais.
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