Fernando Brito
Eu não posso falar da Corte de Luís XVI
porque – como fez o juiz Sérgio Moro quando se fez o paralelo com Savonarola –
podem achar que estou pregando a guilhotina, quando defendo apenas a Queda da
Bastilha. Mas, ao ler a matéria da Agência Pública sobre o Ministério Público
do Estado de São Paulo – e é pouco mais ou menos o que se passa nos outros
estados – concordei com o comentário deixado por outro leitor: isso deveria ser
lido em todas as esquinas do país.
Ainda mais quando eles e seus
assemelhados na Magistratura são capazes de ver em quem critica seu regime de
privilégios e inconstitucionalidades meros subvertedores da Ordem de que são
portadores, que apontam o dedo às suas vergonhas para proteger malversadores do
dinheiro público, aos quais, na prática e sem os riscos de uma cela em
Curitiba, se assemelham em consequências.
Direito
ou privilégio?
Em setembro, o governo de São Paulo
encaminhou para a Assembleia Legislativa do Estado a proposta de orçamento do
Ministério Público (MP) para 2017. A previsão é destinar R$ 2,3 bilhões para
manter funcionando a estrutura criada para defender os direitos dos cidadãos paulistas.
Um orçamento três vezes maior do que o previsto para a Secretaria de Cultura e
o dobro do que será destinado para pastas como Agricultura, Meio Ambiente ou
Habitação. É com esse dinheiro que o MP vai cobrir gastos com água, luz,
telefone, salários – e os polpudos benefícios destinados a procuradores e
promotores.
A remuneração inicial de um promotor
público em São Paulo é de R$ 24.818,71. Na última etapa da carreira, o
procurador de justiça, o salário chega a R$ 30.471,11. São valores que seguem o
teto constitucional: promotores e procuradores paulistas recebem, no máximo,
90,25% do salário de um ministro do Supremo Tribunal Federal.
Mas os vencimentos não terminam por aí.
Somam-se benefícios como vale-alimentação, auxílio-moradia, auxílio-livro, auxílio-funeral,
pagamento de diárias, remunerações retroativas, duas férias anuais. A Lei
Orgânica do Ministério Público de São Paulo, de 1993, prevê 16 auxílios extras
que, apesar de serem considerados legais, ajudam a ultrapassar, em muito, o
teto constitucional.
Na prática, dos 2015 membros do MPSP que
receberam salário em outubro, 1243 receberam a partir de R$ 38,900, ou
seja, 61,7% do total. É um valor acima
dos R$ 33.763 pagos aos ministros do STF, mais os extras. Se prosperar o
entendimento de que “teto é teto” e os “extras” não deveriam estar nem na conta
dos ministros do Supremo, a proporção de promotores e procuradores que
receberam acima do teto constitucional sobe para 79,8%. Foram 1.608 promotores
e procuradores que receberam mais do que o salário teto de R$ 33.736.
A Comissão foi instalada, em novembro,
no Congresso Nacional, para propor um fim aos “supersalários” de funcionários
públicos.
A folha de pagamento do MPSP de outubro
é repleta de exemplos de “supersalários”. Naquele mês o promotor de justiça de
entrância final Milton Theodoro Filho, lotado na capital, recebeu o maior valor
da folha: R$ 129.469,78. Foram R$ 28.947,55 de salário bruto (sem descontar a
contribuição previdenciária e o imposto de renda) e R$ 89.979,35 de indenizações
(incluídos R$ 5.087,73 auxílio-moradia e vale-alimentação). Além disso, há mais
R$ 9.179,62 de valores retroativos da Parcela Autônoma de Equivalência (PAE),
resultado de uma decisão de 1992 do Supremo Tribunal Federal (STF) que equipara
os salários do Judiciário com os do Congresso Nacional.
No mesmo mês, o promotor Julio César
Palhares, que serve em Bauru, no interior paulista, recebeu R$ 118.480,60.
Desse montante, R$ 28.947,55 referem-se ao salário bruto, R$ 82.281,19 a
indenizações não discriminadas, à exceção de R$ 5.087,73 de auxílio-moradia e
vale-alimentação.
Orlando Bastos Filho, promotor em
Sorocaba, foi o terceiro membro com maiores vencimentos no mês, recebendo R$
107.025 brutos. Nesse valor estão incluídos R$ 64.901,22 de indenizações não
discriminadas e R$ 7.864,41 retroativos da PAE. Em 2015, Bastos Filho acirrou
os ânimos dos vereadores do município ao iniciar uma investigação sobre seus
gastos com despesas de telefone, carro oficial e itens de escritório.
O professor de ética e filosofia
política na Unicamp Roberto Romano estuda o poder Judiciário e defende o papel
do MP como instituição de garantia da democracia brasileira.
Mas critica: “Eu acho que o Ministério
Público, justamente porque é o zelador da lei, o fiscal da aplicação da lei,
deveria renunciar a esse tipo de acréscimo ao seu salário, sobretudo porque não
corresponde à experiência de todos os demais funcionários do estado”.
As informações sobre os rendimentos dos
membros do MP estão disponíveis no Portal da Transparência.
Para Antônio Alberto Machado, promotor
aposentado, as altas remunerações do MP estão diretamente associadas a práticas
conservadoras: “As carreiras jurídicas, em geral, se tornaram muito atrativas
de algumas décadas para cá. Há 40 anos não era assim. Isso fez com que os
membros dessas carreiras tivessem um padrão remuneratório equivalente ao que a
gente chama de classe A. A leitura que eu faço é que essas carreiras jurídicas
estão ‘sitiadas’.
Foram tomadas por essas classes média,
média alta, classe alta que têm um valor de mundo conservador e que estão
julgando as classes de baixo”.
Promotores e procuradores têm a
prerrogativa de legislar sobre os próprios vencimentos. Alguns dos valores e
critérios para o pagamento de cada um desses extras são definidos por
resoluções e atos normativos que cabem ao procurador-geral de justiça do
estado. Foi um ato normativo de 2003 que definiu, por exemplo, que o valor de
uma diária corresponde a 1/30 do salário bruto de um promotor em início de
carreira. Em 2016, corresponde a R$ 827,30. O valor extra é pago quando o
promotor tem de substituir um colega de trabalho.
Um ato normativo de 2014 definiu que
promotores e procuradores cedidos para outros órgãos continuam tendo direito a
receber o auxílio-moradia. Trata-se de um complemento à lei orgânica que já
garante que membros do MP que se afastem do cargo para ocupar cargos eletivos,
por exemplo, possam continuar recebendo os vencimentos do órgão se abrirem mão
do outro salário. É o que garante ao deputado Fernando Capez continuar na folha
de pagamento do MP. A troca vale a pena. Enquanto um deputado estadual tem
remuneração de R$ 25.322,25, os vencimentos de Capez em outubro chegaram a R$
40.497. Como secretários do governo de São Paulo, os procuradores Mágino
Barbosa e Elias Rosa receberiam R$ 19.467,94. Porém, ao manterem os salários do
MP, eles receberam, em outubro, respectivamente R$ 56.911,63 e R$ 47.685,94.
Auxílio-moradia
O maior benefício é o auxílio-moradia,
no valor de R$ 4.377 mensais. A ajuda financeira foi autorizada por meio de
liminar do ministro do STF Luiz Fux em setembro de 2014 e se estende a membros
da magistratura e dos ministérios públicos de todo o país. À diferença do que
ocorre com todos os outros funcionários públicos – até mesmo dos congressistas
–, o benefício se destina também para quem tem residência própria e vive na
mesma cidade em que atua. Ficam de fora apenas aposentados e licenciados.
Segundo a folha de pagamento de outubro
de 2016, disponível no Portal da Transparência do MPSP, dos 2.084 promotores e
procuradores públicos na ativa, pelo menos 1.593 recebem o auxílio (76%). O
custo anual para os cofres públicos é de aproximadamente R$ 69,7 milhões. O
valor daria para atender mais de 14 mil famílias com o programa Auxílio-Aluguel
da prefeitura de São Paulo, de R$ 400 mensais.
Mas a despesa não fica por aí. O
adicional foi tratado como retroativo pelo ministro Luiz Fux. Assim, promotores
e procuradores tiveram direito a receber os “atrasados” dos cinco anos
anteriores à liminar, ou seja, desde 2009. Para a maioria da classe, isso
significou uma bolada de mais de R$ 262 mil que vem sendo paga em parcelas
regulares desde então.
Auxílio-livro
Outro auxílio que ajuda a compor o
orçamento anual dos promotores é o auxílio-livro. Uma ajuda extra de até R$
1.700 por ano, criada em 2010 com o objetivo de garantir a atualização técnica
dos promotores e procuradores.
Entre 2010 e 2013, o advogado Rodrigo
Xande Nunes trabalhou como oficial de Promotoria dentro do MP, cuja tarefa era
solicitar verbas indenizatórias para os promotores e procuradores que
assessora. “Bastava o promotor apresentar uma nota fiscal de qualquer livraria
com a descrição ‘livro’ para assegurar o reembolso. Vi livros de doutrina
jurídica que iam parar nas mãos de sobrinhos do promotor que estavam cursando
faculdade de direito, ou romances virarem presentes de aniversário”, lembra.
Depois de ter deixado o cargo de oficial
de Promotoria, Rodrigo Xande seguiu carreira como advogado. É justamente por
estar do lado de fora que ele se dispõe a falar o que pensa sobre os
benefícios, que acredita afastarem a categoria da realidade dos brasileiros: “É
impossível garantir direitos para quem vive cercado de tantos privilégios”,
argumenta.
Uma das instituições mais aguerridas na
defesa de benefícios é a Associação Paulista do Ministério Público (APMP). O
escritório da associação ocupa o 11º andar da sede do MPSP e é presidida pelo
ex-candidato a procurador-geral Felipe Locke. Procurado pela Pública, ele não
concedeu entrevista para a reportagem.
O presidente da APMP tem, no entanto, se
posicionado publicamente sobre o tema. Segundo texto publicado na página da
associação em outubro, sobre a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 62 que
derruba a vinculação automática dos salários de agentes públicos à remuneração
dos ministros do Supremo, ele escreveu: “Sem recursos nossas instituições não
funcionam e sem Ministério Público e a Magistratura, corrupto não vai para a
cadeia. Esses projetos têm o mesmo objetivo da PEC 37 [proposta derrubada pelo
Congresso que propunha limites ao poder de investigação de promotores e
procuradores], acabar com o poder de investigação, deixando os corruptos à
solta”.
Ao mesmo tempo em que a APMP faz
campanha contra a PEC 62, também exerce pressão pela aprovação do Projeto de
Lei Complementar (PLC) 27, que eleva os salários dos ministros do Supremo para
R$ 39,2 mil em janeiro de 2017. Mas nestes tempos em que o governo federal fala
em limitar gastos públicos, a luta corporativa da APMP ficou mais difícil.
Mais direitos
Agora, a nova demanda da classe é
garantir ainda mais benefícios.
Plano
de saúde vitalício
A Assembleia Legislativa de São Paulo
(Alesp) discute, em regime de urgência, o pagamento de planos de saúde de
caráter vitalício para os membros do MPSP. O Projeto de Lei Complementar (PLC)
52/2015 foi apresentado pelo então procurador-geral Márcio Elias Rosa e
acolhido pelo então recém-eleito presidente da Alesp e promotor afastado
Fernando Capez. O PLC 52 já foi aprovado pelas Comissões de Constituição e
Justiça e de Finanças, Orçamento e Planejamento e está pronto para ser votado
pelo plenário desde dezembro de 2015.
Promotores e procuradores querem também
a extensão do auxílio-moradia para seus colegas aposentados. Em outubro de
2015, o Colégio de Aposentados da APMP reiterou o pedido que já vem sendo feito
desde 2013 à Procuradoria-Geral, apelando para o princípio da simetria para
justificar a ampliação da benesse.
Privilégio
nos detalhes
Em novembro de 2015, o MPSP fechou um
contrato para o fornecimento de copinhos de água mineral para a instituição. Ao
custo de R$ 71.724, garantiu o fornecimento de 11.904 copinhos de 200 ml com
água mineral por mês, durante um ano. Porém, o produto é usado para a
hidratação apenas de parte dos servidores, os promotores e procuradores. A
regra, em vigor desde 2011, ganhou forma em um comunicado interno da diretoria
geral do órgão.
Restrições como essa raramente ganham
redação oficial, mas são frequentes no cotidiano do MPSP. Passam pelos lanches
– frutas, sucos e biscoitos, comprados com dinheiro público e que também são
restritos aos promotores e procuradores –, pelas vagas nas garagens e pelo uso
de elevadores.
As diferenciações são tão grandes que os
“outros” funcionários costumam brincar que, se uma pessoa do século 19 pudesse
viajar no tempo, o lugar que se sentiria mais à vontade seria o MPSP. “Eu já
cheguei a falar para um procurador que a época da escravidão passou, que a
ditadura também passou. Tem membro [do MPSP] que, se pudesse colocar o servidor
no tronco e dar um surra, ele faria isso”, critica Jacira Costa Silva, oficial
de promotoria desde 1989 e presidente do Sindicato dos Servidores do MPSP. A
sindicalista enumera situações em que funcionários tiveram de lavar carros e
até pagar contas pessoais dos promotores.
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