Doutora Eunice Paiva, sempre aqui
No livro 'Ainda estou aqui', o escritor Marcelo Rubens Paiva fala sobre um dos mais fortes símbolos da democracia no Brasil; da sua mãe, recém falecida, a advogada Maria Eunice Paiva que lutou durante 25 anos para conseguir o reconhecimento por parte da União do assassinato do marido, deputado Rubens Paiva, pelo governo militar da ditadura de 1964
15/12/2018 13:05
Créditos da foto: Maria Eunice Pava morreu nesta quinta, 13/12 (Reprodução)
Poucos depoimentos sobre a trajetória da advogada Maria Eunice Paiva são mais tocantes e mais adequados, na semana do seu falecimento, do que os registros da vida e da sua personalidade narrados pelo filho, o escritor Marcelo Rubens Paiva, no belo livro de sua autoria, Ainda estou aqui. Viúva do deputado Rubens Paiva, cassado, preso por agentes da ditadura civil-militar de 1964 na sua casa, no Leblon, no Rio de Janeiro, em janeiro de 1971, torturado por eles e morto – entre 20 e 22 do mesmo mês - no prédio do DOI-CODI, no bairro da Tijuca, Eunice deixa um grande círculos de amigos e admiradores da sua forte personalidade, da sua dignidade e da luta que empreendeu pelo reconhecimento do assassinato do marido e de todos ''desaparecidos'' políticos vítimas da ditadura brasileira.
Um dos símbolos mais fortes da luta contra a ditadura, durante mais de duas décadas ela lutou para descobrir o que havia acontecido com o marido, no DOI-CODI da Rua Barão de Mesquita. A resposta oficial só veio 25 anos depois, em 1996, quando conseguiu um atestado de óbito do deputado e o reconhecimento da morte de Rubens Paiva pela qual a ditadura e seus prepostos foram os responsáveis.
Viúva, mãe de cinco filhos – Marcelo, Veroca, Eliana, Nalu e Babiu – criou-os sozinha, voltou a estudar (já era formada em Letras), tornou-se advogada especialista em Direito indígena e foi consultora do governo brasileiro junto ao Banco Mundial e à ONU.
"Ela sempre tinha uma opinião que me surpreendia e que era muito mais sábia à que eu tinha", disse Marcelo, quando do falecimento da mãe, no último dia 13, aos 86 anos, vítima do Alzheimer que a atormentou durante os últimos quatorze anos de vida.
Rogério Sottili, diretor-executivo do Instituto Vladimir Herzog lembrou na ocasião: "Ela orientou os filhos: nós não vamos ficar tristes, nós podemos sofrer internamente, podemos sofrer dentro de casa, mas quando formos para rua, nós vamos ter que mostrar com altivez a nossa determinação, a nossa alegria de lutar por justiça."
A Dra. Eunice morreu exatamente na data em que o famigerado AI-5 decretado pelos militares do governo Costa e Silva completou 50 anos. Sua morte é como que um protesto, e mais que isto, como que um chamado aos moços e aos mais velhos, para que não deixem nunca de lutar '' por um país mais democrático, mais justo e que garanta o direito à memória e justiça a todos os seus cidadãos, “como registrou em nota o Instituto Vladimir Herzog.
Um dos mais contundentes símbolos, ela e sua família, de vítimas da violência moral e física praticada sistematicamente durante regimes autoritários, como foi o caso da ditadura de 64, Eunice Paiva é uma das personagens do projeto Heroínas dessa História, do IVH, que tem por objetivo divulgar e catalogar as trajetórias das corajosas mulheres que tiveram familiares assassinados pelo Estado - para que as sucessivas gerações conheçam e nunca abram mão das lutas.
Além de falar sobre memória, verdade e justiça em Ainda estou aqui (Editora Objetiva, selo Alfaguara), seu filho, o excelente escritor Marcelo Rubens Paiva, de 59 anos, narra episódios da infância e adolescência, comenta a sua relação com sua mãe e com seu filho de um ano de idade e encerra o volume, lançado há três anos, com 26 páginas nas quais reproduz os documentos da denúncia à Justiça, do assassinato de seu pai.
Ainda estou aqui, de Marcelo Rubens Paiva (Reprodução/pausaparaumcafe.com.br)
Vale a pena ler o excepcional trabalho de Marcelo. Alguns trechos mais relevantes do livro: “(Ela)... Nunca se deixou cair no pieguismo, não perdeu o controle diante das câmeras, nem vestiu uma camiseta com o rosto do marido desaparecido. Não culpou esse ou aquele, mas o todo. Não temeu pela vida. Lutou com palavras.”
E outra passagem, das mais comoventes, uma das inúmeras nas quais se refere ao processo de Alzheimer que acometeu a mãe: “A doença chegou no ano em que ela ganhou a ação que começou nos anos 80 e obrigava a União a ressarcir o seguro de vida que ela não pôde resgatar, pois não tinha o atestado de óbito, e uma pensão por danos morais. Quando o dinheiro foi depositado, falei:
- Mãe, vitória, você conseguiu, vamos comemorar, vamos para a Itália, rever nossos antepassados.
- Já conheço a Itália.
- Então, vamos para Paris, para você visitar sua filha e seus netos!
- Já fui muitas vezes a Paris.
(...)
- Então, o que você quer fazer? O dinheiro está na sua conta!
Ela me olhou humildemente e falou o que mais tinha vontade de fazer naquele momento, o que a deixaria a pessoa muito feliz e mais completa da cidade:
- Vamos tomar um sorvete na lanchonete do prédio.
Comemoramos a sua luta de décadas tomando um picolé, só nós dois, numa mesinha de plástico da lanchonete da piscina do condomínio em que moramos, eu no bloco 3, ela no 1, piscina que à tarde fica vazia (...)”
Retratando a última batalha da mãe contra a doença das ''ausências'' e do progressivo desligamento da realidade, Marcelo anota em emocionante fecho:
''(...) Uma nova fala cheia de significados entrou no seu repertório especialmente quando um turbilhão de emoções a ataca, como rever uma filha que mora na Europa ou segurar no colo o meu filho, o que mostra uma felicidade e um alerta caso alguém não tenha reparado: Eu ainda estou aqui. Ainda estou aqui.''
E encerra o volume escrevendo: “A morte do meu pai não tem fim.”
Porque, como relembrou esta semana a procuradora Eugenia Gonzaga, presidente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, ''o tema da responsabilização dos agentes da ditadura está no Supremo parado desde 2011 e não se tem previsão de entrar na pauta." Marcelo reforça a observação e conclui: ''O caso não tem data para ir à plenária do Supremo.''
Um dos símbolos mais fortes da luta contra a ditadura, durante mais de duas décadas ela lutou para descobrir o que havia acontecido com o marido, no DOI-CODI da Rua Barão de Mesquita. A resposta oficial só veio 25 anos depois, em 1996, quando conseguiu um atestado de óbito do deputado e o reconhecimento da morte de Rubens Paiva pela qual a ditadura e seus prepostos foram os responsáveis.
Viúva, mãe de cinco filhos – Marcelo, Veroca, Eliana, Nalu e Babiu – criou-os sozinha, voltou a estudar (já era formada em Letras), tornou-se advogada especialista em Direito indígena e foi consultora do governo brasileiro junto ao Banco Mundial e à ONU.
"Ela sempre tinha uma opinião que me surpreendia e que era muito mais sábia à que eu tinha", disse Marcelo, quando do falecimento da mãe, no último dia 13, aos 86 anos, vítima do Alzheimer que a atormentou durante os últimos quatorze anos de vida.
Rogério Sottili, diretor-executivo do Instituto Vladimir Herzog lembrou na ocasião: "Ela orientou os filhos: nós não vamos ficar tristes, nós podemos sofrer internamente, podemos sofrer dentro de casa, mas quando formos para rua, nós vamos ter que mostrar com altivez a nossa determinação, a nossa alegria de lutar por justiça."
A Dra. Eunice morreu exatamente na data em que o famigerado AI-5 decretado pelos militares do governo Costa e Silva completou 50 anos. Sua morte é como que um protesto, e mais que isto, como que um chamado aos moços e aos mais velhos, para que não deixem nunca de lutar '' por um país mais democrático, mais justo e que garanta o direito à memória e justiça a todos os seus cidadãos, “como registrou em nota o Instituto Vladimir Herzog.
Um dos mais contundentes símbolos, ela e sua família, de vítimas da violência moral e física praticada sistematicamente durante regimes autoritários, como foi o caso da ditadura de 64, Eunice Paiva é uma das personagens do projeto Heroínas dessa História, do IVH, que tem por objetivo divulgar e catalogar as trajetórias das corajosas mulheres que tiveram familiares assassinados pelo Estado - para que as sucessivas gerações conheçam e nunca abram mão das lutas.
Além de falar sobre memória, verdade e justiça em Ainda estou aqui (Editora Objetiva, selo Alfaguara), seu filho, o excelente escritor Marcelo Rubens Paiva, de 59 anos, narra episódios da infância e adolescência, comenta a sua relação com sua mãe e com seu filho de um ano de idade e encerra o volume, lançado há três anos, com 26 páginas nas quais reproduz os documentos da denúncia à Justiça, do assassinato de seu pai.
Ainda estou aqui, de Marcelo Rubens Paiva (Reprodução/pausaparaumcafe.com.br)
Vale a pena ler o excepcional trabalho de Marcelo. Alguns trechos mais relevantes do livro: “(Ela)... Nunca se deixou cair no pieguismo, não perdeu o controle diante das câmeras, nem vestiu uma camiseta com o rosto do marido desaparecido. Não culpou esse ou aquele, mas o todo. Não temeu pela vida. Lutou com palavras.”
E outra passagem, das mais comoventes, uma das inúmeras nas quais se refere ao processo de Alzheimer que acometeu a mãe: “A doença chegou no ano em que ela ganhou a ação que começou nos anos 80 e obrigava a União a ressarcir o seguro de vida que ela não pôde resgatar, pois não tinha o atestado de óbito, e uma pensão por danos morais. Quando o dinheiro foi depositado, falei:
- Mãe, vitória, você conseguiu, vamos comemorar, vamos para a Itália, rever nossos antepassados.
- Já conheço a Itália.
- Então, vamos para Paris, para você visitar sua filha e seus netos!
- Já fui muitas vezes a Paris.
(...)
- Então, o que você quer fazer? O dinheiro está na sua conta!
Ela me olhou humildemente e falou o que mais tinha vontade de fazer naquele momento, o que a deixaria a pessoa muito feliz e mais completa da cidade:
- Vamos tomar um sorvete na lanchonete do prédio.
Comemoramos a sua luta de décadas tomando um picolé, só nós dois, numa mesinha de plástico da lanchonete da piscina do condomínio em que moramos, eu no bloco 3, ela no 1, piscina que à tarde fica vazia (...)”
Retratando a última batalha da mãe contra a doença das ''ausências'' e do progressivo desligamento da realidade, Marcelo anota em emocionante fecho:
''(...) Uma nova fala cheia de significados entrou no seu repertório especialmente quando um turbilhão de emoções a ataca, como rever uma filha que mora na Europa ou segurar no colo o meu filho, o que mostra uma felicidade e um alerta caso alguém não tenha reparado: Eu ainda estou aqui. Ainda estou aqui.''
E encerra o volume escrevendo: “A morte do meu pai não tem fim.”
Porque, como relembrou esta semana a procuradora Eugenia Gonzaga, presidente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, ''o tema da responsabilização dos agentes da ditadura está no Supremo parado desde 2011 e não se tem previsão de entrar na pauta." Marcelo reforça a observação e conclui: ''O caso não tem data para ir à plenária do Supremo.''
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