domingo, 10 de março de 2019

A ciência nunca foi neutra, por Fernando Horta

A ciência nunca foi neutra, por Fernando Horta

A ciência nunca foi neutra, mas depois do capitalismo ela é uma meretriz bem devassa ou um cafetão sem nenhum escrúpulo

FERNANDO HORTA
 Brasília (Brasil) 
No final dos anos 1990, trabalhei num laboratório de toxicologia. Nosso trabalho era receber os estudos de químicos usados como agrotóxicos, medicamentos etc, e fazer os testes de toxicidade e de impacto ambiental. Trabalhávamos com inúmeras empresas estrangeiras e com o Ministério da Agricultura e da Saúde.
Existiam testes de todas as formas, com abelhas (apis melifera), com baratas, com microcrustáceos (ceriodaphnia), com peixes etc.
Chegavam compostos de todas as formas e estudos recomendatórios de todos os jeitos, nossa função era testar e realizar as análises. O pessoal da área química fazia os estudos preliminares para saber se o composto que estavam nos enviando era o que o estudo dizia que era, e da área biológica seguia para a verificação dos "impactos".
Uma das formas de estudo era dissolver quantidades diferentes do composto em água e colocar peixes e crustáceos imersos por um tempo, verificando não apenas o estado do indivíduo que recebia o produto, mas sua capacidade reprodutiva. Daí o uso de microcrustáceos que tinham ciclos de vida relativamente curtos.
Uma vez, um determinado composto foi testado em peixes e microcrustáceos. Me recordo de acompanhar os testes biológicos (eu era responsável pelo CPD e ajudava nas análises e estatísticas). Seis pequenos aquários separados, um sem o produto, e os outros cinco com percentuais de 5, 10, 15, 18 e 25% do tal agrotóxico "revolucionário".
Os peixes e crustáceos eram colocados na solução e monitorados. O procedimento envolvia coleta de dados durante a noite toda, muitas vezes por mais de sete dias. Quando cheguei pela manhã do dia seguinte, havia uma reunião no laboratório. Os donos indignados porque "alguém" havia mexido nos experimentos. Os microcrustáceos haviam sumido dos aquários.
Revolto dos donos afirmando a falta de responsabilidade que era um estudo importante, com prazos a serem respeitados e "bla-bla-bla...". O pessoal da biologia, competentes, diziam que não poderia ter ocorrido nada diferente do estudo poque eles "seguiram o protocolo".
Os crustáceos continuavam sumidos. Refizemos os testes. Agora com a supervisão dos donos. Descobriu-se que a partir de 15% de concentração do composto toda a vida dos aquários morria. Com 25% os animais eram dissolvidos e literalmente "sumiam". Até com 5% os efeitos eram devastadores. Teratogênicos. Inviabilizavam a reprodução.
Após o resultado, recebemos uma carta da empresa internacional dizendo que estavam procurando outro laboratório com "protocolos mais condizentes com a atualidade e mais profissionais". Carta bem ofensiva.
O dono do laboratório resolveu acompanhar pessoalmente aquele produto. Descobriu que com "testes" em outros laboratórios, o produto havia sido aprovado pelo Ministério da Agricultura.
A ciência nunca foi neutra, mas depois do capitalismo ela é uma meretriz bem devassa ou um cafetão sem nenhum escrúpulo.
Pixabay
A ciência nunca foi neutra, mas depois do capitalismo ela é uma meretriz bem devassa ou um cafetão sem nenhum escrúpu

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