segunda-feira, 20 de abril de 2015

Até sempre, Galeano


14/04/2015 - Copyleft

Até sempre, Galeano

Galeano empolgou, e com ele levou milhares de apaixonados empunhando a bandeira da solidariedade, da dignidade, da conscientização e da esperança.


José Carlos Peliano
DONOSTIA KULTURA / Flickr
As veias abertas da América Latina ainda permanecem espalhando os vírus das desigualdades econômicas e sociais. Grande Galeano que nos alertou sobre essas enfermidades crônicas e nos armou de indignação e coragem; pobre Galeano que lutou até o último suspiro sem conseguir ver dias e situações melhores e perenes.

Os avanços das esquerdas latino-americanas levam junto os passos dos retrocessos. Não por desejo ou enganação, mas por doença e contradição. As ideias são livres e poderosas, mas os dias se esbarram em grilhões e ilegalidades. Quem está por cima não dá lugar, quem está por baixo já não tem lugar.

A bandeira da argúcia de Galeano, no entanto, foi desfraldada também por outros em outros povos. Muitos os que navegaram nas galés singradas por Galeano. Guardadas as diferenças de latitude e longitude passaram e continuam pelas mesmas águas os barcos de Hobsbawm, Chomsky, Che, Saramago, Garcia Marques, Amado, Cardenal, Arendt. E milhares de outros abnegados.

A doença das esquerdas resulta em grande parte de não conseguirem colocar em prática e bem as ideias revolucionárias transformadoras. Ideias que levem em frente a abolição da ideologia do mal. Infiltrado nas injustiças, ilegalidades e discriminações de toda ordem, extensão e lugar.

Ideias e ideais são democráticos porque não têm dono. Pecam por não suprirem de realização o sonho libertador, a vontade inolvidável de repartir o mundo para todos sob a regência de uma igualdade humana inquebrantável de direitos e deveres. Permanece apenas o bordão da liberdade na arquitetura e construção da ideologia do humano pleno.

Ideias revolucionárias que trombam com ideias discricionárias quando as armas políticas da luta pelo trabalho, pela igualdade, pela esperança trombam com as armas do capital, da propriedade, da austeridade. Milhões de vozes libertárias contra poucos feudos encastelados em muros de conluios preestabelecidos.

Contra a razão das esquerdas valem-se as classes dominantes do próprio domínio obtido e mantido ao longo da história por saques, pilhagens e corrupção, nos primórdios a céu aberto e com a revolução industrial a leis ditadas pelas mesmas classes. A regulação feita por instituições, ordenamentos e administrações hierarquizadas e meritocráticas.

Galeano se insurgiu contra esse estado de coisas, vendido a todos como natural, onde as coisas dominam os homens no diagnóstico de Marx. A libertação dos homens dessa situação requer das esquerdas caminhos muitas vezes contraditórios, que mesmo não seguindo a trilha e o labirinto da dominação capitalista. Doença e contradição caminham juntas na luta democrática sob a regência do capital.

Contradição entre seguir a trilha e se valer do status quo vigente para conseguir avançar ou dele não se valer, mas de expedientes parciais ou radicais de luta revolucionária. Várias experiências socializantes passaram por isso e os resultados não chegaram a bom termo. Mesmo a sobrevivente Cuba com avanços consideráveis em educação, saúde e politização do povo, enfrenta os bloqueios econômicos impostos pelo capital globalizado.

Marx previra que o capital iria destruir-se a si mesmo, mais dia menos dia, de acordo com seu processo cíclico de acumulação progressiva. Crises econômicas aqui e ali apontam sintomas embrionários dessa previsão. Mas o capital consegue se metamorfosear de outras roupagens, seja na esfera econômica, seja na financeira, seja na institucional, para conseguir ressurgir das cinzas e voltar à dominação.

O capital assume e transforma as atividades e ações, que na sociedade se mostram de início com aceitação incipiente mas promissora, em negócios posteriores, eficientes e lucrativos. As ideias e ideais das esquerdas não conseguem superar e sobrepujar a sanha, o domínio e o dinheiro dos capitalistas. A arena de luta se adapta e permanece sendo a da luta de classes.

Se ficar o bicho pega, se correr o bicho come. O ideal da igualdade entre os homens é primitivo, primal, puro. Perde o tempo, o viço e a espontaneidade diante da doença e contradição pelas quais passam e sofrem as esquerdas. Embora o sonho continue. Que se torna pesadelo quando os limites impostos pela organização institucional dita democrática se fecham restritos. A superação tem de vencer as impossibilidades.

Daí a vigilância, o alerta e a luta constante. Em todos os cantos da sociedade onde impere a indiferença, o dolo, o descarte, a pilhagem. Há que indignar-se sempre, denunciar sempre, incomodar sempre, reagir sempre. Desigualdades e injustiças se acomodam quando não há expressão de revolta e combate.

Galeano sabia e seguiu sua vida como o vigia uruguaio da América Latina, embora com a certeza e a razão latino-americana. Com sua voz de locutor expandia sua verve, saber e convicção pelos quatro cantos. Empolgou e com ele levou milhares de apaixonados empunhando a bandeira da solidariedade, da dignidade, da conscientização e da esperança. Suas armas eram a indignação e a urgência. Deixou batalhões de indignados e urgentes.

Meu tributo de respeito ao inesquecível amigo de ideias e ideais:


Tributo a Eduardo Galeano


não fica menor a vida
com a morte de uma flor
do cão predileto, do abacateiro


nem quando não mais estão os pais
a amiga da foto amarelada
a infância agora conto de fadas


fica sim a vida sem cor
quando as veias se rompem
se abrem mais ao longo da América Latina


nem as galés de tempos sem memória
que abriram as veias do grande oceano
perderam vida e cor mas sim história
sem a voz de Eduardo Galeano



*economista, colaborador de Carta Maior


Créditos da foto: DONOSTIA KULTURA / Flickr


Fonte: Carta Maior

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