Retrocessos
e avanço
José Tarcízio Fernandes
Transcorridos os primeiros meses de
turbulência do governo empossado, bem que cabem algumas reflexões sobre a nova
realidade nacional que deles emerge.
Por ditoso paradoxo, o amargo dos
tenebrosos registros de um passado ainda recente fortalece o anseio que tem a
nação de avançar nos caminhos de sua renascente democracia, sob o pálio da qual
se respira ampla liberdade; e se investiga, e se descobre, e se pune quem
apanhado em culpa, embora nos limites seletivos de pessoas e de tempo de
governos para blindar conhecidas forças políticas.
Hoje, são os parlamentos que se
transformam em palcos de bonecos de cordéis saltitantes nas mãos de grupos em
pruridos de retomada do controle do poder.
Em Honduras, o exército prendeu e
deportou o presidente Zelaya, cumprindo mandado de prisão de um Tribunal
Superior que elaborou motivada interpretação da lei para acudir o casuísmo de
um momento triste da história desse país centro-americano. A ONU e a OEA
consideraram "uma alteração inconstitucional da ordem democrática." E
Obama assim viu inicialmente, mas logo fez-se aliado do retrocesso.
Essa patuscada política – quase vinha a
palavra mais certa, patifaria – repetiu-se no Paraguai. O senado aprovou em 24
horas o “impeachment” do presidente Lugo, sem lhe garantir o direito de defesa.
“É uma nova modalidade de golpe de Estado supostamente constitucional",
verberou o secretário-geral da Unasul. "Vai contra o espírito da
democracia", bradou Shifter, outro líder latino-americano.
É
a nova moldura para golpes de estado que se semeiam nas Américas, menos
antipáticos por sua aparente legalidade.
Arma-se o cenário, o mesmo em todo país.
Nele, criatividade nenhuma dissimulando intenções. Urde-se um crescente clima
social de inquietação e profundo mal-estar. Põe-se dúvida na democracia para
resolver os problemas do povo. Dissemina-se a crença de que a classe política,
toda ela, não presta; ou quase toda, à exceção dos opositores (!!!).
Constrói-se, com uma mídia engolfada em interesses subalternos, a ideia de que
os partidos são meros instrumentos de trapaças, como se eles, enquanto
partidos, fossem culpados por desacertos de filiados; ou, pior ainda, como se a
democracia fosse a causa dos males, induzindo o povo a aderir a apelos de ruptura
da ordem democrática, sem perceber que é o ventre fértil do sistema a gerar
esfomeados de recursos públicos e privados, entredevorando-se nessa luta em que
todos se salvam, mais vivos e robustos.
Esse plano astucioso chegou sem êxito à
Venezuela tentando demonizar seus líderes maiores, todos submetidos a
sucessivos processos eleitorais sem vícios significativos confirmados por
observadores internacionais idôneos enviados ao país. Quis prosperar na Bolívia
de Evo Morales, do índio-presidente, e do socialismo de cocares, rituais
sagrados e danças típicas da floresta que fazem descer sobre o povo energia
cósmica do sol e da lua; e a pátria de Bolívar, pela vez primeira, ser uma voz
ouvida com respeito no concerto dos povos do mundo. Vai ao Equador de Rafael
Correa, que governa com altivez e independência. Busca desestabilizar a
Nicarágua de Daniel Ortega, o grande herói nacional que derrotou pelas armas a
ditadura sanguinária de Somoza. Reaparece na Argentina, com um pedaço do seu
território, as Malvinas, sob o domínio colonizador da Inglaterra, em pleno
Século XXI. Andou perturbando a vida do Uruguai, do ex-presidente e
guerrilheiro José Mujica, um missionário das idéias de justiça social.
Por coincidência, governos, todos eles,
que decidiram adotar uma política interna e externa própria, sem a ninguém
pedir licença, ou ceder servilmente a pressões de potências hegemônicas, como
era no passado. E combatem desigualdades e exclusões sociais, embora – ao menos
no Brasil – sem acender a luz de uma visão crítica na consciência de cada
cidadão para ver e identificar as raízes verdadeiras que alimentam essas
desigualdades e exclusões sistêmicas próprias do capitalismo.
O povo aprendeu muito na ditadura e
amadureceu com as duras lições dela recebidas. Já não quer de volta o pesadelo.
Quer mais democracia, como opção de “fazer o Brasil deslanchar para uma nação
justa, livre, soberana e igualitária”, sem a preocupação do poder pelo poder
nas mãos de qualquer governo, como adverte frei Betto em entrevista recente.
* Advogado
Publicado em CONTRAPONTO, 19/04/2015
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