segunda-feira, 20 de abril de 2015

Falta um índio Juruna no Congresso

Falta um índio Juruna no Congresso

19/4/2015 17:44
Por José Ribamar Bessa Freire, de Niterói

Os índios não têm representação no Congresso e podem perder suas reservas
Os índios não têm representação no Congresso e podem perder suas reservas
Hoje, 19 de abril, Dia do Índio, protestos pipocam aqui e ali por todo o Brasil contra Proposta de Emenda Constitucional – a PEC 215 – que pretende transferir do Executivo para o Congresso Nacional o poder de demarcar terras indígenas, quilombolas e unidades de conservação. Na prática, esta PEC inviabiliza a demarcação das terras que garantem não apenas a existência dos índios, mas também a qualidade de vida dos brasileiros que ficam assim desprotegidos no campo ambiental.
No início da semana, cerca de 1,5 índios participaram em Brasília da Mobilização Nacional e ao passarem diante do Congresso apontaram para o prédio suas flechas e bordunas, tocaram maracás e apitos, gritando “Fora PEC 215″. Eles sabem que tal proposta coloca a raposa cuidando do galinheiro. Muitos deputados da comissão especial que analisou a PEC 215 foram financiados por empresas do agronegócio e da mineração, por madeireiras e bancos, segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
No Congresso, as raposas felpudas defendem descaradamente os interesses de quem financiou suas campanhas milionárias, algumas com mais de um milhão de reais. A bancada ruralista, fortalecida com a nomeação da senadora Kátia Abreu para o Ministério da Agricultura, já está decidindo sobre as terras indígenas, antes mesmo da votação da PEC, contrariando a Constituição de 1988. Do total de 988 terras indígenas, 323 estão sem qualquer providência e 146 ainda em estudos para identificar, segundo dados do COMIN/CIMI.
Bancada da flecha
No Congresso Nacional é possível encontrar bancadas de A à Z para defender todo tipo de interesse: a bancada do Agronegócio, do  BBB (Bala, Boi e Bíblia), do Cimento e até uma Frente Parlamentar em defesa dos Povos Indígenas, bastante combativa, mas até mesmo nela não é possível ouvir a voz solitária de qualquer índio. Não existe um só índio entre os 513 deputados e os 81 senadores, o que debilita e envergonha a democracia brasileira, considerando que os índios totalizam quase um milhão de pessoas, segundo o último Censo do IBGE.
Inexiste a bancada do arco e flecha. Na história do Brasil, o único deputado indígena foi Mário Juruna, filho de um chefe Xavante da aldeia Namunkurá (MT), que só começou a falar português aos 18 anos, quando entrou em contato com a sociedade regional de Barra do Garça. Ficou conhecido porque por onde andava levava um gravador que registrava o que diziam as autoridades, para mostrar que quase nunca cumpriam a palavra empenhada. Usava o gravador como detector de mentiras.
Filiado ao PDT do Rio de Janeiro, Juruna, eleito com o apoio de Darcy Ribeiro e Brizola, exerceu seu mandato na legislatura de 1983 a 1987. No Congresso, criou a Comissão Permanente do Índio e deu maior visibilidade aos problemas que enfrentavam os povos indígenas. Teve a coragem de denunciar publicamente o empresário Calim Eid que lhe ofereceu grana para votar em Paulo Maluf, candidato à eleição indireta à presidência da República.
No exercício de seu mandato, um dia Mário Juruna marcou audiência com o ditador de turno, general Figueiredo, para cobrar dele o não pagamento da dívida externa brasileira e as demissões do presidente da Funai e do ministro Delfim Neto – o gordinho sinistro. Nenhuma de suas reivindicações foi atendida. No Rio de Janeiro, na ausência de Brizola no Palácio Guanabara, Juruna sentou na cadeira do governador e “assumiu o poder” por duas horas, declarando que “índio não quer apito, quer o poder”.
O único contato pessoal que tive com Juruna foi em julho de 1980, quando ele ainda não era deputado. Convidei o líder xavante à minha casa, depois do encontro dos índios com o Papa João Paulo II em Manaus. Lá, comentei que eu seria preso se desse uma porrada no ministro Mário Andreazza, mas se o autor fosse ele, Juruna, nada lhe aconteceria, uma vez que os índios eram considerados inimputáveis, o que só seria modificado em 2002 com a aprovação do novo Código Civil. Ele percebeu que eu estava brincando e riu, graças a Deus. Graças a Deus?
O extermínio
Nos tempos bicudos em que o Rio de Janeiro manda para a Câmara de Deputados alguém do calibre intelectual e do estofo moral do Eduardo Cunha (PMDB, vixe, vixe), não há mesmo lugar para Mário Juruna. Maltratado por grande parte da mídia, ridicularizado por não falar o português como língua materna, folclorizado, Juruna não conseguiu ser reeleito e acabou morrendo em 2002 no ostracismo. De lá para cá, apesar de tentativas de alguns outros índios em diferentes estados brasileiros, ninguém mais foi eleito. Faz falta uma voz como a de Mário Juruna.
A voz do índio foi ouvida no plenário da Câmara e depois no Senado em duas sessões solenes realizada na última quinta-feira (16) em homenagem ao Dia do Índio. Além de Marina Silva e de parlamentares de diferentes partidos, ocuparam a tribuna Raoni, Aritana, David Yanomami, Sonia Guajajara, Neguinho Truká, João Tapajós, Lindomar Terena e outros. O presidente da Câmara, Eduardo Cunha, se pirulitou da sessão, que não foi transmitida ao vivo pela TV Camara, como é de praxe.
Hoje, o que ecoa, de forma dominante, no plenário do Congresso Nacional é a voz do ex-prefeito do Rio de Janeiro, Paulo de Frontin (1860-1933), duas vezes senador e patrono da Engenharia Brasileira. Ele foi nomeado pelo presidente da República para presidir  as comemorações dos 400 anos do Brasil. No dia 4 de maio de 1900, abriu a Sessão Magna do Quarto Centenário, com um discurso inesquecível, que já citamos aqui em outras ocasiões, com a grafia da época.
O Brasil não é o índio. Descoberto em 1500 pela frota portugueza, o Brasil é a resultante directa da civilização occidental, trazida pela immigração, que lenta, mas continuadamente, foi povoando o sólo (…) Os selvícolas, esparsos, ainda abundam nas nossas magestosas florestas e em nada differem dos seus ascendentes de 400 anos atrás; não são nem podem ser considerados parte integrante da nossa nacionalidade; a esta cabe assimilá-los e, não o conseguindo, eliminá-los”.
O espantoso é que essa não era a voz de um zé mané qualquer. Era a voz de um político, que foi senador e prefeito da capital da república. O alarmante é que ele não falou isso num bate-papo em um boteco, mas num discurso oficial, em meu e em teu nome, para celebrar os 400 anos da pátria. É isso que a PEC 215 quer fazer com os índios: assimilá-los e não conseguindo, eliminá-los. Tudo isso, para abocanhar as terras indígenas. Resta saber se o Brasil vai permanecer calado diante desse crime.
José Ribamar Bessa Freire é professor da Pós-Graduação em Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNI-Rio), onde orienta pesquisas de doutorado e mestrado e da Faculdade de Educação da UERJ, coordena o Programa de Estudos dos Povos Indigenas (UERJ), pesquisa no Programa de Pós-Graduação em Memória Social (UNIRIO) e edita o site-blog Taqui Pra Ti. Tem mestrado em Paris e doutorado no Rio de Janeiro. É colunista do novo Direto da Redação.
Direto da Redação é um fórum de debates editado pelo jornalista Rui Martins
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