Democracias golpe a golpe
Adolfo Pérez Esquivel*
O governo democrático do Brasil foi
derrocado por intrigas palacianas de deputados e senadores, pela cumplicidade
de setores do Judiciário e grupos empresariais. O parlamento criminalizou um
ato de governo, público e legal, recorrente em governos
anteriores, sem comprovação de delito, como exige a Constituição, afastando,
assim, de suas funções a presidenta Dilma Rousseff.
Utilizaram a metodologia do “golpe de
Estado brando”, aplicado em Honduras e no Paraguai, ensinando uma séria
advertência a governos do continente, atuais e futuros, que tentem ampliar as
margens de soberania nacional e aumentar o leque de distribuição de riqueza e
renda da população.
Na minha mais recente viagem ao Brasil,
tive a oportunidade de fazer o que muitos organismos internacionais não
conseguiram: reuni-me com a presidenta Dilma Rousseff, com senadores
(governistas e da oposição), com o presidente do Supremo Tribunal Federal, com
o secretário da CNBB e com os movimentos sociais. Apresentei os resultados
desses encontros em um artigo publicado no jornal Folha de São Paulo. Isso me
possibilitou uma visão geral do que acontece nesse país, o que me leva a dizer
que há setores que não têm qualquer interesse em resolver a crise política e
econômica atual. O que querem, mesmo, é conduzir todo o processo, sem qualquer
permissão de outrem, mas guiados por decisões outorgadas a si próprios.
Tão logo ocorreu o afastamento da
presidenta Dilma, o Secretário Geral da União das Nações Sul-americanas
(UNASUR) disse que esse ato “põe em perigo a estabilidade democrática na
região”. Por sua vez, o Secretário Geral da Organização dos Estados Americanos
(OEA) afirmou que isso gera “insegurança jurídica”, e submeteu o assunto à
apreciação da Corte Interamericana de Direitos Humanos. O governo de El
Salvador desconheceu o governo interino e chamou de volta o seu embaixador; os
governos dos países integrantes da Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa
América (ALBA) - Venezuela, Cuba, Nicarágua, Equador e Bolívia – afirmaram que
se tratou de um “golpe”; Chile e Uruguai externaram a sua “preocupação”.
O primeiro governo a reconhecer o golpe
e pedir que se “respeite o processo institucional” foi o de Maurício Macri, em
sintonia com o pedido da administração de Barack Obama de “confiar nas instituições
brasileiras”.
O objetivo em pauta é de domesticar
governos e recolonizar a América Latina. O que a direita não consegue pelas
urnas, procura alcançar através da destituição ilegal de presidentes. O seu
propósito é privatizar empresas estratégicas estatais e entregar os recursos
naturais.
Não acredito em casualidades. Os
documentos revelados por Wikileaks dão conta de que o atual depositária da
Presidência, Michel Temer, foi colaborador do serviço de inteligência
norte-americana (CIA), entregando documentos sensíveis à sua embaixada. E a
atual embaixatriz dos Estados Unidos no Brasil é a mesma que estava no Paraguai
quando se deu o golpe de Estado que destituiu o presidente Fernando Lugo.
O presidente interino Michel Temer já
anunciou as suas próximas medidas econômicas, não votadas pelo povo brasileiro:
aumentar impostos, “privatizar tudo o que puder”, reduzir o gasto público e as
despesas com programas sociais. Para tanto, montou um gabinete afinado com
essas prioridades: sem mulher, índio ou negro. Todos são homens brancos e
milionários. O maior produtor de soja do mundo foi nomeado ministro da
Agricultura. Outros ministros nomeados estão envolvidos em casos de corrupção,
que diziam combater.
Por certo, nenhuma democracia, nem
governo eleito, são perfeitos. Tampouco é menos certo que não se deve permitir
que grupos conspiradores violem a Constituição em favor de seus
própriosinteresses. Toda democracia é passível de aperfeiçoamentos, se conta
com a participação social. O que hoje se questiona é a democracia delegada, em
que o povo vota, fica quatro anos em situação passiva e indefesa, enquanto os
governantes fazem o que querem, e não o que devem. O desafio que se tem pela
frente é o de passar à democracia participativa, onde a sociedade decide sobre
os grandes problemas que o país enfrenta, em vez dos grandes núcleos de poder
econômico, internos e externos.
Aos povos da Nossa América resta-nos a
resistência social, cultural e política, para defender os direitos de todos,
inclusive e particularmente de nossas democracias.
* Prêmio Nobel da Paz
Tradução: Ademir Alves de Melo
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