Roberto Amaral
Sem legitimidade, sem voto e sem popularidade, o vice enfrentará, logo,
o descontentamento profundo. O golpe de Estado, que se consolida a cada dia,
realiza-semediante a usurpação do mandato de uma presidente legitimamente
eleita, que ninguém crê haver praticado crime.
Aparentemente fechando um ciclo, o do desenvolvimentismo
nacional-popular, esse golpe parlamentar-midiático-judicial operado no
Congresso Nacional abre espaço para uma nova fase de conservadorismo, antipopular,
antitrabalhista, mediante a instalação de um governo conservador, comprometido
com o que há de mais atrasado na política brasileira.
Uma vez mais, e talvez ainda não pela última vez, a direita interrompe,
a frio, uma experiência tímida de integrar socialmente os pobres por meio de um
projeto de conciliação de classe, ilusão que dominou o segundo e bom governo
Vargas e presidiu o lulismo (um conjunto voluntarioso de ações ainda carente de
teorização); ilusão que esbarrou na renitente resistência oligárquica a
qualquer proposta de mudança, reacionarismo que aflora com maior virulência nos
períodos de crise econômica.
O alienado apelo à conciliação – no caso dos governos do lulismo, uma
reiteração dos erros que levaram à composição com os militares no ocaso da
ditadura – serviu apenas para deixar mais confuso e errático o projeto de
origem na centro-esquerda.
De um lado o programa do PT, de outro a ‘Carta aos Brasileiros’. De um
lado Henrique Meirelles e Antonio Palocci, de outro a tentativa de promover a
emergência das massas mediante o combate às desigualdades sociais. Ou, Joaquim
Levy recessivista comandando a economia de um governo ideologicamente
comprometido com a inclusão e o desenvolvimentismo. Daí sua errância pendular.
O que será esse novo ciclo, qual será sua duração, é impossível desde
já prever. É justo supor, porém, que a crise brasileira – das esquerdas e dos
governos de centro-esquerda – não é um fato isolado, pois dialoga com o avanço
da direita em todo o mundo, e mais particularmente na América do Sul:
Argentina, Peru (a presidência está sendo disputada por dois candidatos
conservadores) e Venezuela (em crise sob todos os aspectos).
No que nos diz respeito não devem passar sem consideração nosso papel
político regional e nossa presença no cenário internacional como a 7ª economia
no mundo.
A existência de uma articulação político-militar norte-americana,
envolvendo recursos políticos, materiais e logísticos nas conspirações contra
os governos Vargas (1954) e Jango (1964), está hoje fora de questionamento.
Não afirmo que a História se repete, mas é preciso registrar as
dificuldades dos EUA de conviverem com uma política externa brasileira “ativa e
altiva”, para usarmos uma feliz expressão de Celso Amorim.
Essas dificuldades ocorrem desde Jânio Quadros (1961), à exceção de
Castelo Branco (1964-1967) no mandarinato militar, de Fernando Collor
(1989-1992) e de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002).
A política externa conheceu seguidos momentos de atrito com a política
do Departamento de Estado, seja no palco multilateral, seja no âmbito regional.
O primeiro deles foi o esvaziamento, pelo Brasil, do projeto da ALCA,
contraposto pelo fortalecimento do MERCOSUL; pela criação da UNASUL; do
Conselho de Defesa da América do Sul; da Comunidade de Estados
Latino-Americanos e do Caribe-CELCA (primeira tentativa de articular apenas
nações dessas regiões); e pela recusa em transformar nossas Forças Armadas em
milícia contra o narcotráfico.
Especial destaque cobra a constituição dos BRICS, a abertura para o
comércio com o hemisfério Sul e de particular com a África, e a aliança
comercial com a China, que se transformou em nosso principal parceiro
econômico.
Em síntese, ao restabelecer a política externa independente, fazendo
cessar a dependência levada ao extremo nos governos Collor e FHC, a chamada
“era Lula” adotou um protagonismo jamais bem assimilado.
No plano estratégico-militar, na sequência da Estratégia Nacional de
Defesa, optou pela parceria com os suecos – que ainda estão fora da OTAN – para
a fabricação de nossos caças supersônicos e associou-se aos franceses para a
renovação de nossa frota de submarinos convencionais e para a construção de
nossos futuros submarinos de propulsão nuclear.
Como as reações a essa política contribuíram para desestabilizar o
governo Dilma Rousseff é tema por estudar, certamente apenas quando, como
ocorreu relativamente aos eventos que conduziram ao golpe de 1964 e sustentaram
a ditadura, os arquivos dos EUA forem abertos ao público.
Não deve ser irrelevante o fato de em todos os países tomados pela
direita, um dos primeiros enunciados seja o abandono de políticas externas
independentes, com a consequente e imediata restauração da dependência aos
interesses da geopolítica dos EUA.
Entre nós não está sendo diferente. Esse servilismo antinacional já foi
anunciado e para executá-lo, jogando ao lixo todo e qualquer resquício de
política externa digna, ou simplesmente ‘altiva’, ninguém melhor do que o
senador José Serra (PSDB), saudosista da política de adesão automática aos EUA,
adversário de nossa ação continental, adversário de nosso protagonismo,
adversário do MERCOSUL, expectante de alguma coisa que lembre a ALCA.
Ninguém melhor do que ele para negociar a internacionalização, a preço
de banana – aproveitando-se contra nós da queda do preço do barril do petróleo
– de nossas reservas do pré-sal.
O governo provisório do vice interino é a decorrência lógica das
alianças políticas, institucionais e econômicas que garantiram o golpe.
Nacionais e internacionais, logísticas e financeiras, políticas e judiciais,
envolvendo um STF partidarizado, que oscila entre a judicialização da política
e a politização da Justiça, essas alianças são, sobretudo, de interesses. E
cobram seu preço.
Tanto o Congresso (afinal a deposição de Dilma Rousseff resultou de um
golpe parlamentar) quanto o STF sabem quanto foram decisivos e estão cobrando o
preço devido. O Congresso reivindica ministérios e o STF negocia aumento de
salários e protagonismo, digno de um Poder Moderador, arcaísmo monárquico se
infiltrando em nossa República, sereníssima.
Daí o aspecto frankensteiniano do novo ministério liliputiano, só de
homens, só brancos, só ricos: contempla os interesses das bancadas da bala, do
boi, dos bancos e da bíblia, o que há de mais primitivo e conservador nas
seitas evangélicas fundamentalistas, um aglomerado de interesses unificados
pela decisão de chegar ao poder a qualquer preço, para nele locupletar-se; ecoa
os interesses dos representantes da velha politica, os filhos e os netos da
velha oligarquia patriarcal e patrimonialista, em plena sintonia com o atraso,
e sempre serviçais do grande capital, da grande propriedade, latifundiários,
grileiros e desmatadores, no geral velhos beneficiários da privatização do
Estado.
À baixa credibilidade do vice presidente interino, cujo sucesso revela
as possibilidades da mediocridade na política, soma-se a péssima qualidade do
ministério com o qual afronta as esperanças nacionais.
Com jeito e pretensões de quem veio para ficar, Michel Temer já disse o
que pretende: seu projeto, seu ânimo, sua vontade, seu prazer é servir sem
constrangimento ao retrocesso político-social. A apenas isso se reduz seu
programa, seu projeto, seu discurso.
Será, enquanto durar (praza aos céus que seja breve), um governo
binário, do não aos interesses nacionais e populares, do sim aos interesses do
capital rentista e da burguesia subsidiada da Avenida Paulista.
Governará para a dívida e não para a produção; levará a ferro e fogo o
ajuste fiscal antipovo que sua base de hoje negou à presidente Dilma Rousseff,
e criará novos impostos; para financiar os lucros do capital, já anunciou,
reduzirá os gastos com saúde, educação e inclusão social, a saber, aquelas
despesas que mais de perto dizem respeito às camadas mais pobres da população.
Governará contra os pobres e uma de suas primeiras medidas será a
alteração da lei da previdência, aumentando a idade mínima para a aposentadoria,
o que só prejudica os pobres, pois só pobres dependem da previdência e só os
pobres ingressam cedo no mercado de trabalho.
Sem legitimidade, filho e fruto da traição e da truculência
institucional, sem voto e sem popularidade, o vice governante, pretendendo
perpetuar-se no poder, enfrentará, logo, o descontentamento profundo, e mais
cedo do que se poderia esperar será o alvo da reação popular, aquela mesma que
ajudou a mobilizar contra a presidente Dilma.
O governo Temer, marcado pela usurpação e pelo perjúrio, é um governo
despudoradamente na contramão da opinião pública e do pronunciamento eleitoral
de 2014. Nesse sentido é uma fraude.
Ilegítimo de origem, nasce sob a contestação popular. Filho de um golpe
parlamentar, dirigido de fora pela mídia monopolizada, seu ministério é o
pagamento de uma promissória: afinal, o golpe foi perpetrado a partir da Câmara
dos Deputados, um meio pantanoso que reflete a miséria moral de seu comandante
(que mesmo afastado ainda a comanda!), o inefável Eduardo Cunha.
Temer paga os votos do impeachment e, ao mesmo tempo, buscando uma
larga maioria, tenta se vacinar contra os riscos de um governo sem base
parlamentar, como o de Dilma Rousseff, sem base parlamentar confiável
exatamente porque se entregou ao PMDB, essa empresa de interesses dirigida pelo
hoje presidente interino. Fruto da crise que cevou, o governo provisório que
busca a permanência será o governo da crise permanente.
Trata-se de um governo exumado do passado.
Fonte: www.amaral.org 21/05/2016
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