O Estado
brasileiro parece desintegrar-se
Entrevista com Moniz Bandeira
O
historiador e cientista político Luiz Alberto Moniz Bandeira tem seu livro mais
recente lançado no Brasil: “A desordem mundial” (Ed. Civilização Brasileira),
um amplo estudo do caótico cenário internacional. Aos 80 anos, ele também tem
sido homenageado pela sua vasta obra e história de vida de intelectual
engajado. Em junho, foi homenageado pela União Brasileira de Escritores. No dia
4, a homenagem é na Universidade de São Paulo. Da Alemanha, onde vive, ele
concedeu esta entrevista.
·
Em seu livro “A
desordem mundial”, o senhor aborda diversos pontos de tensão ao redor do mundo.
O mundo retrocedeu na busca pela paz entre as nações? Como o Brasil do golpe
parlamentar/impeachment se encaixa neste complicado tabuleiro de xadrez?
Desde o governo do presidente Lula da
Silva, o Brasil, conquanto mantivesse boas relações com os Estados Unidos,
inflectiu em sua política exterior no sentido de maior entendimento com a China
e a Rússia e empenhou-se na conquista dos mercados da América do Sul e África,
a favorecer as empresas nacionais, como todos os governos o fazem. Ao mesmo
tempo, reativou a indústria bélica, com a construção do submarino atômico e
outros convencionais, em conexão com a França; a compra dos helicópteros da
Rússia; e, dos jatos da Suécia; países que aceitaram transferir a tecnologia,
como determinou a Estratégia Nacional de Defesa, aprovada pelo Decreto Nº
6.703, de 18 de dezembro de 2008. E essa transferência de tecnologia, que os
Estados Unidos não aceitam realizar, é necessária, indispensável, ao
desenvolvimento econômico e à defesa do Brasil, pois “la souveraineté est la
grande muraille de la patrie”, conforme o grande jurista Rui Barbosa proclamou,
ao defender, na Conferência de Haia (1907), a igualdade dos Estados soberanos.
Outrossim, ele advertiu, citando Eduardo Prado, autor da obra “A ilusão
Americana”, que não se toma a sério a lei das nações, senão entre as potências
cujas forças se equilibram. Esta lição devia pautar a estratégia de segurança e
defesa nacional. O Brasil é e sempre foi um pivot country no hemisfério sul
devido à sua dimensão geográfica, demográfica e econômica, a maior do
hemisfério, abaixo dos Estados Unidos, apesar da assimetria. E constituiu com a
Rússia, Índia, África do Sul e China o bloco denominado BRIC, contraposto,
virtualmente, à hegemonia dos Estados Unidos, e abrir uma alternativa à
preponderância do dólar nas finanças e no comércio internacional. Tais fatores,
entre outras coisas, como a exploração do petróleo do pré-sal sob o controle da
Petrobras - dentro de um contexto em que os Estados Unidos deflagraram outra
guerra fria contra a Rússia e, também, contra a China - concorreram para que
interesses estrangeiros, aliados a poderoso segmento do empresariado
brasileiro, sobretudo do Sul do país, encorajassem e financiassem o golpe
parlamentar, conjugando a mídia e o judiciário, com o apoio de vastas camadas
das classes médias.
·
Como o senhor viu
o processo do impeachment e a ascensão
de Michel Temer ao poder? Como em 1964, há quem diga que o golpe atende a
interesses norte-americanos - desta feita, no pré-sal. O senhor acredita nesta
hipótese?
O Estado brasileiro parece
desintegrar-se. Nem durante a ditadura militar a Polícia Federal invadiu o
Congresso. Ela ganhou uma autonomia, que não podia ter, não respeita governo
nem a Constituição, e muitos de seus agentes são treinados e conectados com o
FBI, DEA, CIA etc. Os promotores-públicos e juízes, por sua vez, passam por
cima das leis, extrapolam, como senhores de um poder absoluto e incontestável.
Estão incólumes. Quase nunca são penalizados. E, quando o são, afastados das
funções, continuam a receber suas elevadas remunerações, dez vezes ou mais
superiores aos dos juízes da Alemanha, França, Inglaterra, Estados Unidos e
outros países altamente desenvolvidos, segundo a European Commission for the Efficiency of Justice (CEPEJ) e outras
fontes. Certos magistrados do STF comportam-se como políticos partidários.
Outros, que se deviam resguardar, fazem declarações públicas, antecipando
julgamentos, e afiguram como se estivessem intimidados pela grande mídia, um
oligopólio, uníssono na condenação, aprovação ou omissão de fatos. O Congresso
está pervertido, muito dinheiro correu para a efetivação do impeachment da
presidente Dilma Rousseff, canalizado pela CIA e ONGs, financiadas e sustentadas
pelas fundações de George Soros, USAID e National Endowment for Democracy
(NED), dos Estados Unidos. E esse golpe de Estado, que começou com as
demonstrações em São Paulo, no estilo recomendado pelo professor Gene Sharp, no
seu manual “Da Ditadura à Democracia”, traduzido para 24 idiomas, atendeu a
interesses estrangeiros, entre os quais, mas não apenas, não o único, a
exploração das camadas de pré-sal, que, de acordo com a Lei 12.351 estaria a
cargo da Petrobras, como operadora de todos os blocos contratados sob o regime
de partilha de produção, condição esta anulada pelo projeto 4.567, em
tramitação na Câmara de Deputados. Todo o alicerce da República, proclamada com
o golpe de Estado de 1889, está podre. É um lodaçal.
·
Como o senhor vê
o juiz Sergio Moro? Herói inquestionável para uns, inquisidor a serviço da
plutocracia para outros, ele é sinônimo de polêmica, inclusive, por que passou
por um estágio no FBI, segundo a filósofa Marilena Chauí.
O que Marilena Chauí disse é,
virtualmente, certo. De qualquer modo, o fato é que o juiz Sérgio Moro,
condutor do processo contra a Petrobras e contra as grandes construtoras
nacionais, realizou cursos no Departamento de Estado, em 2007. No ano seguinte,
em 2008, o juiz Sérgio Moro passou um mês num programa especial de treinamento
na Escola de Direito de Harvard, em conjunto com sua colega Gisele Lemke. E, em
outubro de 2009, participou da conferência regional sobre “Illicit Financial
Crimes”, promovida no Rio de Janeiro pela Embaixada dos Estados Unidos. A
Agência Nacional de Segurança (NSA), que monitorou as comunicações da
Petrobras, descobriu a ocorrência de irregularidades e corrupção de alguns
militantes do PT e, possivelmente, passou informação sobre o doleiro Alberto
Yousseff, a delegado da Polícia e ao juiz Sérgio Moro, de Curitiba, já treinado
em ação multijurisdicional e práticas de investigação, inclusive com demonstrações
reais (como preparar testemunhas para delatar terceiros). Não sem motivo o juiz
Sérgio Moro foi eleito como um dos dez homens mais influentes do mundo pela
revista Time. Seu parceiro, o
procurador-geral Rodrigo Janot, acompanhado por investigadores federais da
força-tarefa responsável pela Operação Lava-Jato, em fevereiro de 2015, foi a
Washington buscar dados contra a Petrobras e lá se reuniu com o Departamento de
Justiça, o diretor-geral do FBI, James Comey, e funcionários da Securities and
Exchange Commission (SEC). Sérgio Moro e o procurador-geral da República
Rodrigo Janot atuaram e atuam com órgãos dos Estados Unidos, sem qualquer
discrição, contra as companhias brasileiras, atacando a indústria bélica
nacional, inclusive a Eletronuclear, levando à prisão seu presidente, o
almirante Othon Luiz Pinheiro da Silva. E ainda mais, eles e agentes da Polícia
Federal vazam, seletivamente, informações para a mídia, com base em delações
obtidas sob ameaças e coerção, com o objetivo de envolver, sobretudo, o
ex-presidente Lula. Os danos que causaram e estão a causar à economia
brasileira, interna e externamente, superam, em uma escala muito maior,
imensurável, todos os prejuízos que a corrupção, que eles dizem combater. E
continua a campanha para desestruturar as empresas brasileiras, estatais e
privadas, como a Odebrecht, que competem no mercado internacional, América do
Sul e África.
·
No Brasil e no
mundo, parece estar ocorrendo uma espécie de levante conservador
antiprogressista. Quem o senhor acha que está por trás da paranoia
anticomunista que desenterraram lá dos anos 1950 em pleno século 21? A quais
interesses serve este tipo de manipulação da opinião pública?
Não estou vendo nenhuma paranoia
anticomunista no Brasil nem na Europa. Em São Paulo, os grupos de pessoas que
levantaram a questão do comunismo, nas demonstrações contra a presidente Dilma
Rousseff, eram inexpressivos e ninguém levou a sério. Aldo Rabelo, dirigente do
PCdoB, foi ministro da Defesa do Brasil e nenhum problema houve com as Forças
Armadas. Como o notável historiador Eric Hobsbawm, que conheci em Londres em
1978, disse certa vez à agência de notícias Telam, da Argentina, “já não existe
esquerda tal como era”, seja socialdemocrata ou comunista. Ou está fragmentada
ou desapareceu. Ele tinha toda a razão. Entretanto, o elevado desenvolvimento
tecnológico favoreceu a concentração de riqueza e de poder e as disparidades
sociais aumentaram ainda mais nos países da periferia do sistema capitalista,
alimentando o fundamentalismo religioso, em meio à instabilidade política. E
oito anos após o colapso financeiro de 2007/2008, mais de 44 milhões de pessoas
estão desempregadas nos países da Europa e nos Estados Unidos. Mesmo assim, as
grandes corporações bancárias e industriais, o capital financeiro
internacional, tratam de impor ao país reformas no sentido de acabar com os
direitos sociais, conquistados pela classe trabalhadora ao longo do século XX.
E, ainda mais, os Estados Unidos pretendem eliminar a legislação nacional dos
diversos países para que os interesses das megacorporações multinacionais, do
capital financeiro, sobrepujam a soberania dos Estados nacionais nas relações
econômicas e comerciais, conforme estatuídas no Tratado de Parceria
Transatlântica (TPA), no Tratado Transpacífico (TTO) e no Tratado Internacional
de Serviços (TISA). Mas a resistência aumenta.
·
Numan Kurtulmus,
vice-premiê turco, declarou (no dia 20 de outubro), que a operação para
libertar Mossul (Iraque) do Estado Islâmico e a guerra na Síria podem levar
Estados Unidos e Rússia a um conflito direto, uma “3ª Guerra Mundial”. E ainda
há a situação complicada na Ucrânia. Isto vai de encontro ao tópico das
“guerras por procuração” que o senhor desenvolve em seu livro. Estamos a
caminho de um conflito global?
O polo maior de tensão não é Mossul. É
Aleppo, na Síria. Lá os Estados Unidos estão em um beco sem saída. A cidade, a
segunda maior e mais importante da Síria, sob intenso bombardeio, está na
iminência de cair sob o domínio completo das forças de Bashar al-Assad. E se
Aleppo cair, Damasco, que já conquistou Latakia, Homs e Hama, dominará
praticamente toda a Síria. Essas cidades concentram 70% da população e os mais
significativos redutos industriais e praças de comércio do país, cujo resto do
território é quase todo deserto. Os Estados Unidos, entretanto, continuam a
sustentar a resistência dos que chamam de “rebeldes moderados”, na verdade,
terroristas da Jabhat Fatah al-Sham (Frente da Conquista da Síria), Jabhat
al-Nusra, ramo de al-Qaeda na Síria, Ahrar al-Sham e mais diversos grupos
jihadistas. Por volta do dia 20 de outubro de 2016, a Rússia enviou dois
maiores navios de sua Marinha de Guerra, o cruzador de combate Pyotr Velikiy,
movido a energia nuclear, e o porta-aviões Almirante Kuznetsov para o leste do
Mediterrâneo, com a tarefa de instituir uma zona de exclusão naval de 1.500km,
ao longo do litoral da Síria, e enfrentar qualquer ataque de países do Ocidente
contra Damasco. Por outro lado, uma fragata da Marinha de Guerra da Alemanha e
o porta-aviões Charles de Gaulle já se dirigiram para a mesma região. Quanto à
Ucrânia, Washington está consciente de que a Rússia não vai devolver a Criméia
e Kiev não tem alternativa senão reconhecer a autonomia da região de Donbass,
Donetsk e Luhansk. Não creio, porém, que a Rússia e os Estados Unidos/OTAN
cheguem, diretamente, a qualquer confronto armado seja por causa da Ucrânia ou
da Síria. Uma guerra nuclear aniquilaria toda a humanidade.
·
Há quem defenda
os Estados Unidos como o país mais democrático do planeta. Mas logo no primeiro
capítulo do seu livro, o senhor relata uma tentativa de golpe fascista em 1934,
alinhado ao governo alemão hitlerista e bancado pela elite econômica ianque. Há
ainda o histórico de intervenções (abertas ou secretas) que os EUA praticam em
todo o mundo, inclusive no Brasil, sempre vendendo sua ideia de “democracia”,
também amplamente documentado em sua obra. O mundo ficaria melhor sem essa
política intervencionista? Ou ela serve ao equilíbrio de poder?
Os Estados Unidos, devido às suas
tradições culturais e políticas e ao elevado desenvolvimento do capitalismo,
precisavam e precisam conservar a mantra do “excepcionalismo”, do exemplo de
democracia perfeita etc. Porém, a suposição de que lá nunca houve golpes de
Estado não corresponde propriamente aos fatos históricos. Se nos Estados Unidos
não houve golpes militares, ocorreram quatro assassinatos de presidentes e
cinco atentados, que fracassaram. Constituíram atos de violência e
aparentemente resultaram de conspirações, para mudança de governo. Abraham
Lincoln (1865), James Garfield (1881), William McKinley (1901) e John F.
Kennedy (1963) foram assinados. E Andrew Jackson (1835), Franklin D. Roosevelt
(1933) (como presidente eleito), Harry S Truman (1950), Gerald Ford (1975) e Ronald
Reagan (1981) sofreram tentativas de assassinato. No entanto, na América
espanhola, apesar da instabilidade, nunca geralmente ocorreu a necessidade de
matar o presidente, o que só ocorreu em meio de uma revolução ou de um golpe
militar, como no Chile (Manuel de Balmaceda, 1891), Bolívia (Gualberto
Villarroel, 1946) e Chile (Salvador Allende, 1943). Quase sempre bastou que o
Exército se rebelasse, desse um golpe e expulsasse ou exilasse o presidente. É
necessário, entretanto, não esquecer que os golpes de Estado, ocorridos,
sobretudo, a partir da Segunda Guerra Mundial, como no Brasil, Argentina, Chile
etc., foram encorajados pelos Estados Unidos, cujas intervenções, diretas e ou
indiretas, só produziram, desde o fim da Guerra Fria, guerras, terror, caos e
catástrofes humanitárias.
·
A onda do ódio
conservador atualmente em voga tem dado força a candidatos de perfil bastante
controverso, como Donald Trump, Marine Le Pen e no Brasil, Jair Bolsonaro. O
senhor acredita que eles possam chegar ao poder em seus países? Que
consequências adviriam da eleição deles?
Jair Bolsonaro é caricatura, comparado
com Donald Trump e Marine Le Pen. Não creio que esse coronel, uma reminiscência
grotesca do que houve de pior na ditadura militar, pudesse ser eleito
presidente no Brasil. Os fatores que alimentam as candidaturas de Donald Trump
(Hillary Clinton é uma excrescência neoconservadora, responsável também pela
sangria na Líbia) e Marine le Pen são outros e diversos. Nos Estados Unidos, o
presidente Barack Obama, do Partido Democrata, é igual ou pior que seu
antecessor George W. Bush, neoconservador do Partido Republicano. Na França,
François Hollande, do Partido Socialista, é da mesma laia que seu adversário
conservador e colonialista Nicolás Sarkozy. Entre les deux mon cœur balance. Je
ne sais pas laquell au pis-aller. E daí é que Marine le Pen desponta.
Nenhum comentário:
Postar um comentário