quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Quem são os cardeais rebeldes que acusam o papa Francisco de heresia

17/11/2016 17:02 - Copyleft

Quem são os cardeais rebeldes que acusam o papa Francisco de heresia

Os religiosos, representantes de setores mais conservadores do catolicismo, sugerem que o papa criou uma 'grave desorientação e confusão entre os fiéis'.


Valeria Perasso - BBC Mundo
reprodução
Uma rebelião anunciada. Um grupo de cardeais manifestou publicamente preocupação com os ensinamentos do papa Francisco, acusando o pontífice de causar confusão em relação a assuntos-chave para a doutrina católica.
 
Em carta divulgada nesta semana, os sacerdotes questionam o papa por encorajar aAmoris Laetitia(Alegria do Amor), documento que é uma tentativa de abrir novas portas para católicos divorciados e tornar a Igreja mais tolerante com questões relacionadas à família.
 
A rigor, a carta não é nova: os cardeais a enviaram ao papa em setembro, com cinco perguntas específicas que exigem apenas um "sim" ou um "não" como resposta. Eles querem esclarecer o que consideram dúvidas ou imprecisões, no que diz respeito "à integridade da fé católica ".
 
A novidade é que agora eles decidiram tornar seu questionamento público.




Cardeais conversam nas ruas do VaticanoAFP / GETTY IMAGES / Setores mais conservadores da Igreja estão inquietos diante das ideias mais liberais do Papa Francisco


 
Os religiosos, representantes de setores mais conservadores do catolicismo, sugerem que o papa criou uma "grave desorientação e confusão entre os fiéis". E pedem a ele uma resposta para as "interpretações contraditórias" decorrentes de seu tratado sobre o amor.
 
Pano de fundo
 
Assinada por quatro cardeais, a carta representa um sinal claro de dissidência, que reflete o descontentamento dos setores mais conservadores da Igreja.
 
Dos signatários, três são cardeais aposentados: os alemães Walter Brandmüller e Joachim Meisner e o italiano Carlo Caffarra. O americano Raymond Leo Burke, único que ainda está na ativa, é crítico frequente do papa Francisco.
 
Eles afirmam que decidiram tornar a carta pública após esperar dois meses por uma resposta do pontífice que nunca chegou.
DocumentoAFP / Publicado em abril, o documento, de 260 páginas, é fruto de três anos de trabalho


 
Mas, por trás da carta, o que se observa é uma rivalidade latente entre setores da Igreja, que já tinha sido esboçada em abril deste ano, quando a Laetitia Amoris foi publicada.
 
Com 260 páginas, o tratado é um guia para a vida em família e propõe que a Igreja aceite algumas realidades da sociedade contemporânea.
 
Ao invés de fazer críticas, o documento convida os sacerdotes a tratarem com compaixão, por exemplo, os católicos divorciados que voltam a casar, dizendo que "ninguém pode ser condenado para sempre. "
 
Trata-se de uma das tentativas mais contundentes do papa Francisco em tornar a Igreja Católica mais aberta e inclusiva para seus 1,3 bilhão de fiéis no mundo.
Cardeal Christoph Schonborn segura uma cópia da publicaçãoAFP / GETTY IMAGES / Cardeal Christoph Schonborn segura uma cópia da Laetitia Amoris, considerada bem-vinda por muitos, mas insuficiente para outros


 
Alguns religiosos afirmam, no entanto, que a Laetitia Amoris está cheia de imprecisões que dão origem a interpretações contraditórias da doutrina católica.
 
De acordo com especialistas, os cardeais não escolheram tornar a carta pública agora por acaso. A divulgação aconteceu logo após o vazamento de uma correspondência do papa com os bispos de Buenos Aires, sua terra natal, em que o pontífice sugere uma interpretação do seu tratado, considerado uma "heresia" por um dos cardeais signatários.
 
Em particular, o polêmico capítulo oito de Amoris laetitia, que fala da possibilidade dos divorciados que voltam a se casar em cerimônias civis, sem conseguir a anulação da união religiosa, receberem a comunhão.
Momento da comunhãoAFP / GETTY IMAGES / Aos divorciados que voltam a se casar no civil, a Igreja proíbe a comunhão, que é parte central da liturgia católica


 
A Igreja proíbe a comunhão de divorciados há séculos, por considerar como "irregular" ou ato de adultério toda tentativa de se constituir um casal após uma separação, a menos que se abstenha de relações sexuais e a convivência seja "como irmão e irmã".
 
A Amoris laetitia não altera a doutrina, mas abre brechas para que os bispos de cada país a interpretem de acordo com a cultura local e avaliem cada caso.
 
Para o papa Francisco, há fatores que limitam a "responsabilidade e culpa" do divorciado, então a "Amoris laetitia abre a possibilidade de acesso aos sacramentos da reconciliação e da Eucaristia".
 
"Não há outra interpretação", informou o pontífice, em sua carta aos bispos argentinos.
Papa Francisco na capa da revista AFP / "Os tempos mudaram", diz a chamada da revista 'Rolling Stone' com o Papa na capa

 

 


 

Aos olhos do público



 
A carta dos cardeais dissidentes, divulgada na segunda-feira, questiona o papa especificamente sobre esta questão.
 
Eles o fazem por meio de dilemas, questões teológicas que exigem uma resposta positiva ou negativa, e que são um mecanismo para tirar dúvidas sobre temas relacionados aos sacramentos ou padrões morais.
 
O primeiro dilema questiona se, ao contrário do que foi estabelecido por papas anteriores, "agora é possível perdoar" ou "dar a comunhão a uma pessoa que, embora unida por um casamento, vive com outra como marido e mulher", o que contradiz expressamente a encíclica do papa João Paulo II de 1981.
 
Cardeal Joachim Meisner rezandoAFP / GETTY IMAGES / O alemão Joachim Meisner, um dos cardeais que assinaram a carta


 
De acordo com os cardeais, a falta de resposta do pontífice a essa e outras quatro questões levou à decisão de tornar a carta pública, diante da sua "consciência de responsabilidade pastoral."
 
Os sacerdotes negam, no entanto, que se trate de um ataque "conservador" contra setores "progressistas" da Igreja, ou uma "tentativa de fazer política" ou de se rebelar contra o papa.

 


 

As entrelinhas políticas



 
Para os teólogos mais conservadores, os ensinamentos modernos do papa sobre as famílias e divorciados católicos são, em parte, "sacrilégio" e "podem justificadamente ser considerados hereges", como sinalizou Steve Skojec, cofundador e diretor da publicação católica One Peter Five.
 
Eles veem o tratado como um movimento do pontífice para afrouxar as normas morais que regem os fundamentos da Igreja.
Cerimônia de nomeação de Raymond Burke como cardeal pelo Papa Bento 16 em 2010AFP / GETTY IMAGES / Raymond Burke, único cardeal que assinou a carta e segue exercendo a função, foi nomeado pelo papa Bento 16 em 2010


 
Outros religiosos acreditam, no entanto, que a Amoris laetitia não tem peso suficiente para alimentar uma revolta entre os cardeais, muito menos o vazamento da correspondência do papa com os bispos portenhos.
 
A verdade é que a carta dos cardeais não é a primeira interpelação ao líder do catolicismo. Em julho, 45 teólogos e sacerdotes assinaram outro documento, dirigido ao Colégio dos Cardeais, exigindo esclarecimentos do papa Francisco.
 
Questões relacionadas ao divórcio - assim como à homossexualidade, à educação sexual, à desigualdade econômica, à responsabilidade no combate às mudanças climáticas e outros temas sensíveis para a hierarquia católica - vêm expondo a cisão entre o papa e os setores mais conservadores da Igreja.
Manifestante usa fantasia de biquini com máscara do papa FranciscoGETTY IMAGES / Para os grupos mais liberais, a reforma da Igreja está longe de ser a ideal


 
"O papa não mudou a doutrina, mas abriu as portas para uma maior conexão com os católicos em questões como o divórcio, para que sejam analisados casos individuais", afirma a jornalista Caroline Wyatt, responsável há muitos anos pela cobertura de temas religiosos na BBC.
 
"Os conservadores dizem, por sua vez, que o papa abre caminho para um futuro caos, ao introduzir a ideia de que uma solução única para todos não deve ser o caminho a seguir dentro da Igreja".
 
No outro extremo, diz Wyatt, estão os liberais, também infelizes. Mas, neste caso, porque não consideram suficiente o processo tardio de modernização da Igreja: esperam "algo que o papa nunca será capaz de entregar."


Créditos da foto: reprodução




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