Quando
instituições se dão o respeito e quando não
Em 23 de fevereiro de 1981, o
tenente-coronel Antonio Tejero Molina, da Guarda Civil espanhola, invadiu, com
uma tropa de 200 homens, o Congresso dos Deputados das Cortes, em Madri, ao
tempo em que era juramentado o primeiro-ministro Leopoldo Calvo Sotelo. Exigiam
os revoltados a constituição de um governo de salvação nacional sob o comando
do General Alfonso Armada.
Eugênio Aragão*
Tratava-se de tentativa de restauração
do regime franquista e de abortar o recém inaugurado processo de democratização
do país. A revolta foi sufocada e Tejero Molina, juntamente com seus homens
presos, expulsos da Guarda Nacional e condenados a longas penas de reclusão.
Em 17 de novembro de 2016, um grupo de
fascistas celerados invade o plenário da Câmara dos Deputados em Brasília para
exigir o retorno da ditadura militar. Agridem agentes da polícia legislativa,
quebram a porta de vidro do recinto, sobem com seus sapatos sobre a mesa da
presidência e arrancam o pavilhão nacional de seu mastro para pisoteá-lo.
Interrompem com sua algazarra a sessão do legislativo, ameaçam os presentes,
tudo sob os olhares contemplativos da segurança e do presidente da Casa, Waldir
Maranhão, que parece mais surpreso do que indignado. Controlada a baderna, os
invasores são detidos, não sem tentativa de alguns deputados da direita
política de passar panos quentes. Resolve-se tomar o depoimento de todos e
permitir-lhes o tranquilo regresso a seus lares, como se o acontecido fosse um
irrelevante incidente, merecedor apenas de jocosos comentários da mídia local.
Essa diferença de tratamento entre os
revoltados espanhóis e os celerados brasileiros traduz bem o grau de
decomposição das instituições nacionais depois do deprimente espetáculo do 17
de abril do ano corrente, quando a casa baixa do parlamento pátrio resolveu
acatar pedido de instauração de processo de impedimento da Senhora Presidenta
da República Dilma Rousseff, num grande carnaval de um desqualificado baixo
clero de mandatários, sob a batuta mesquinha de Eduardo Cunha, hoje preso para
garantia da ordem pública, acusado de milionário desvio e apropriação de
recursos públicos.
Na Espanha, as instituições funcionaram
e o país pode celebrar já mais de 40 anos de restauração da democracia. No
Brasil, as instituições não se fazem respeitar e, depois de incipiente
tentativa de construção de uma democracia inclusiva, o país afunda no caos
planejado por quem não aceitou o resultado das eleições presidenciais de 2014.
No mesmo dia 16 de novembro de 2016,
assistimos atônitos a um pai assassinar seu filho por ter este participado de
protestos estudantis de ocupação de escolas; a um ministro da Corte Suprema
faltar ao decoro ao destratar publicamente seu par e a um carro oficial com
senadores a bordo atropelar manifestantes que bloqueavam seu caminho ao Palácio
da Alvorada. Lá o Sr. Michel Temer recebia, com banquete custeado pelos
contribuintes, parlamentares de sua base de apoio (aqueles mesmos que rasgaram
os votos de mais de 54 milhões de brasileiros), para garantir a aprovação de
emenda constitucional que condenará o Brasil ao desinvestimento público para os
próximos vinte anos, sem prejuízo à manutenção plena dos lucros dos rentistas
da dívida pública.
Este é nosso terrível estado da arte. A
ousadia inconsequente dos reacionários e inimigos da democracia não tem fim. A
cada dia um golpe dentro do golpe, direitos desconstruídos, violência política
desatada, a alimentar a desesperança dos democratas, enquanto os celerados
dançam em volta da fogueira com a cabeça sangrenta da democracia num tabuleiro,
feitos Salomé, filha de Herodias, com a cabeça de São João.
Até quando vamos tolerar essa degradação
de nossas instituições? Nenhuma parece se salvar. Nas ruas, a violência da
intolerância política se torna senso comum. O entusiasmo irrefletido de pessoas
obnubiladas pelo discurso de ódio e iludidas com populismo dos órgãos de
persecução penal festeja a ruptura constitucional e se esbalda com a exibição
pornográfica de políticos e empresários presos para o gáudio da "opinião
pública". Trata-se de estratégia bem estudada de semear a infelicidade dos
amantes brasileiros da liberdade e torná-los estáticos, incapazes de reagir.
O fascismo se alimenta do desespero e do
ódio. É essencialmente perverso. Irriga cérebros com adrenalina a bloquear a
capacidade de discernimento dos humanos. Onde endorfinas e serotonina conseguem
empurrá-la, para distribuir felicidade em nossas mentes, o fascismo não tem
lugar. Por isso, temos que resistir ao derrotismo. Resistir sempre. A luta por
dias melhores e o amanhã de nossos filhos e netos só está começando.
Precisamos nos tornar mais dialógicos,
conquistar corações e mentes ainda perturbadas pela intensa campanha de
desesperança e de descrença na resiliência de nossa democracia. Exijamos o
cumprimento da Constituição e das leis contra os que a maltratam, sejam eles
parlamentares, juízes, procuradores ou gestores. Não aceitemos o esgarçamento
de nosso tecido institucional e cobremos respeito pela liturgia dos cargos
públicos. Façamos que nem nossos jovens, que nos enchem de esperança ao se
contraporem à destruição do sistema educacional: não podemos dar trégua.
O Brasil merece o respeito às
instituições e o repudio àqueles que as querem transformar em tabernas ou
lupanares. Quanto às autoridades, como tais só podem ser tratadas, quando
prestigiam o lugar que lhes é confiado pelo povo. Quando o desmerecem, perdem
sua condição e se equiparam a moleques em turba rueira. É bom que disso se
lembrem, pois o destino daqueles que desafiam a democracia, num estado
civilizatório pleno, não pode ser diferente daquele que os espanhóis deram ao tenente-coronel
Antonio Tejero Molina.
* Jurista, professor da Faculdade de Direito da Universidade de
Brasília (UnB). Membro do Ministério Público Federal desde 1987 e foi Ministro
da Justiça em 2016.
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