As duras lições
das contradições do golpe
Não surpreende o barulho causado pela
algazarra de grupelhos fascistas ao redor do Instituto de Direito Público e de
residências de ministros do STF, inconformados com decisão da Corte Suprema de
conceder ordem de habeas corpus a José Dirceu. Essas matilhas são pouco
criativas e já perturbaram o sono de Suas Excelências em outras ocasiões.
A novidade nesse deprimente cenário de
intolerância moralista é que um dos alvos do ataque é o Ministro Gilmar Mendes,
um dos artífices do golpe, useiro e vezeiro em dar opinião política e
partidária sobre tudo, até mesmo sobre processos em curso, fazer críticas
ácidas e deselegantes contra colegas, promover articulação política em
bastidores como se fosse líder de bancada parlamentar e não ver problema nenhum
em decidir processos patrocinados pelo escritório de advocacia da esposa.
Enfim, o Ministro Gilmar é tudo que um magistrado não deveria ser.
Mas o Ministro Gilmar Mendes fez isso
tudo sob os olhares complacentes de seus pares e, quase sempre, com aplauso da
mídia comercial. Seu jeito paquidérmico de enfrentar cenários políticos
adversos tornou-o pessoa controversa, mas jamais chegou perto de ser ameaçado
na sua investidura. Entre medo, indiferença e admiração, a atitude dos que
poderiam reagir sempre foi de recolhimento tático.
O Ministro Gilmar Mendes já fez a festa
dessa direita irada e babante protagonizada por seitas bolsonaristas e outros
sociopatas, como a turma dos revoltados online. A cada vez que chutava o
governo de Dilma Rousseff, o PT ou Lula, havia gritaria entusiástica da horda
fascista.
E agora isto: seu instituto empresarial
cercado pelos zumbis políticos que antes o carregavam nos ombros.
O que aconteceu?
O Ministro Gilmar Mendes pode, como
todos nós, ter muitos defeitos. Mas não é nem burro, nem ignorante. Poucos
atores do espaço político brasileiro têm sua visão e seu instinto tático. Não é
à toa que sobreviveu a controvérsias que na maioria das nações civilizadas
deste planeta já lhe teriam trazido copiosos procedimentos disciplinares, para
dizer o mínimo.
Ninguém duvida que o "stare
decisis" in re José Dirceu não passa de uma abertura de porteira pela qual
passará o estouro de uma gorda boiada. As linhas tortas da decisão fizeram,
contudo, Justiça. Puseram um freio na insolência curitibana, que fazia chacota
do devido processo legal e do imperativo do julgamento justo. A corrida de Amok
dos procuradores e a cínica seletividade do juiz primevo que, em inquirições de
testemunhas, é cúpido em colocar-lhes frases incriminadoras na boca,
direcionando as declarações em prol da acusação, está ganhando visibilidade e o
circo montado na capital paranaense está perto de pegar fogo.
O Ministro Gilmar Mendes tem este
mérito. Como personagem mais visível desta justiça caricata que tomou conta do
país, ele é talvez o único capaz de reverter o quadro deplorável de insanidade
institucional que corrói a governabilidade e a própria democracia.
Não o fará porque morra de amores por José Dirceu e pelo
PT.
Já chamou o ex-Presidente Lula de bêbado
em sessão do TSE, referiu-se aos governos trabalhistas como cleptocracia,
impediu, sem qualquer fundamento constitucional ou legal, a posse de Lula como
Chefe da Casa Civil, num momento de aguda crise de sobrevivência de Dilma
Rousseff no seu mandato conquistado nas urnas e ignorou a coisa julgada sobre
as contas de campanha da chapa Dilma-Temer para preparar o terreno de sua
cassação a pedido da então oposição.
Mas é exatamente por isso que se
fortalece neste momento de graves contradições do golpe parlamentar.
Para salvar golpistas de primeira hora
agora tangenciados pela fúria da devassa da Lava-Jato, dispõe-se a colocar os
pingos nos "ii" dessa operação de avacalhação do devido processo
legal e de desmonte da indústria nacional. E nisso se anulará um dos vetores
mais reacionários à governação democrática e popular no Brasil.
O Ministro Gilmar Mendes sabe melhor que
todo mundo que o ministério público se transformou num risco real à vida
institucional do País. Combate esse ativismo persecutório há mais de duas
décadas, quando percebeu, antes de todos os políticos progressistas ou não, o
perigo da politização de um órgão parajudicial que concentra tanto poder em
suas mãos. Assistiu com ácidas críticas, no governo FHC, à promiscuidade
corporativo-institucional que visava ao fortalecimento do prestígio de membros
do ministério público que lhes engordava vantagens e prebendas.
Chegamos a um momento em que se tem que
colocar um ponto final nesse processo insano de destruição do Estado a partir
de dentro de suas estruturas.
Isso não significa leniência com a
corrupção.
Significa o fim da leniência com abusos
que anulam garantias fundamentais, sejam de poderosos ou de fracos, de ricos ou
de pobres.
O Estado de direito precisa voltar a
seus trilhos de normalidade, dando a seus instrumentos de defesa, como a
polícia e o Ministério Público, a dimensão que seja funcional para que não se
enterrem as esperanças no nosso futuro.
A corrupção não se pode controlar com a
aniquilação da política. Esta também precisa ser reestruturada e redimensionada
nos seus custos.
Mas não cabe ao Ministério Público ou ao
Judiciário fazerem-no e sim à soberania popular, esteio do poder democrático.
Querendo ou não, só personagens com o
tamanho, a falta de escrúpulos e a ousadia do Ministro Gilmar Mendes são
capazes de dar um basta nas práticas ilegítimas de uma burocracia faminta e
insaciável de poder e vantagens.
Qual o rumo que Gilmar Mendes tomará
depois dessa missão é dúvida não pode nos encher de esperança. Mas cada dia com
sua agonia. Para o momento, esta é a dura lição que o acirramento do golpe nos
traz, com todas suas contradições difíceis de atingir a compreensão da maioria
da sociedade cansada de conflitos e ódio.
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