Falta de alimentos, economia em baixa e protestos: entenda a atual crise na Venezuela
Segundo o governo, Assembleia Constituinte foi convocada para superar o esgotamento do diálogo com a oposição e buscar a paz entre os venezuelanos, que enfrentam uma grave crise política e econômica desde meados de 2014
No 1º de Maio, Dia do Trabalhador, o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, anunciou a intenção de chamar uma Assembleia Nacional Constituinte para redigir uma nova Carta Magna para o país. Em seu principal argumento, está o esgotamento do diálogo com a oposição e a necessidade de buscar a paz entre os venezuelanos, que enfrentam uma grave crise política e econômica desde meados de 2014.
A Venezuela é governada por uma aliança de partidos de esquerda desde 1999. Esse conjunto de forças é capitaneado pelo PSUV (Partido Socialista Unido da Venezuela) e tem como liderança maior o ex-presidente Hugo Chávez, falecido em março de 2013. Maduro, o atual mandatário, venceu as eleições meses depois da morte de Chávez. Na Venezuela, em caso de vacância do presidente, o vice assume somente para convocar novas eleições. Os mais de 18 anos de governo convencionou-se chamar de "chavismo" ou de "revolução bolivariana".
Renda petroleira
Com a maior reserva petrolífera comprovada do mundo, a Venezuela tem sua economia baseada na renda do petróleo, que corresponde a 70% dos investimentos do poder público. Assim, mudanças nos preços do hidrocarboneto no mercado mundial afetam diretamente o cotidiano dos venezuelanos. Durante os últimos 80 anos de exploração no país, o petróleo sempre foi motivo de ascensões e derrocadas de governos.
Desde 2013, o petróleo tem enfrentado mais um ciclo de queda sistemática nos preços, que nas boas épocas do chavismo chegou a custar US$ 120 e hoje acomodou-se em US$ 50, mas que nos momentos mais radicais desta crise chegou a custar parcos US$ 30, como no primeiro trimestre de 2016.
A maior parte das políticas públicas e programas sociais, chamados no país de Missões, implantados pelo ex-presidente Chávez, foram resultado direto da venda média de três milhões de barris diários do ouro negro, dos quais dois terços vão para os Estados Unidos.
A Misión Vivienda, por exemplo, que é o programa de construção de moradias, apresenta resultados surpreendentes para um país de cerca de 30 milhões de habitantes, com mais de 1,5 milhão de moradias doadas ou vendidas sob forte subsídio público. Ou ainda a Misión Barrio Adentro, que levou para as periferias do país sul-americano milhares de médicos cubanos.
A própria Caracas, com prédios públicos imponentes, como o complexo cultural Tereza Careño, ou as grandes avenidas de seu centro financeiro, é um retrato das épocas áureas de lucro petroleiro dos anos 1970 e 1980, a despeito da pobreza extrema que sempre marcou as áreas periféricas e o interior do país. Tal situação, no entanto, teve no governo Chávez uma radical virada.
Início da atual crise
Desde sua vitória eleitoral, em abril de 2013, Maduro enfrenta uma forte oposição dos partidos agrupados na MUD (Mesa da Unidade Democrática) que, em primeiro ato, não reconheceram a vitória do chavista, para, depois, pedirem a recontagem dos votos.
O sistema eleitoral venezuelano é reconhecido como confiável por centenas de técnicos de diversos países ao longo das diversas eleições realizadas pelo chavismo e chegou inclusive a ser considerado pelo Instituto Carter, do ex-presidente estadunidense Jimmy Carter, como um dos mais seguros do mundo. "Das 92 eleições que observamos, eu diria que o processo eleitoral na Venezuela é o melhor do mundo", disse Carter em setembro de 2012.
Assim, nos últimos quatro anos, a oposição não deu trégua ao governo de Maduro. A chamada “guerra econômica” levada a cabo no país gerou uma situação de desabastecimento de comida e escassez de produtos básicos, golpeando fortemente a população.
"Há um mercado especulativo, mas que no fundo a intenção é política, de gerar uma série de desequilíbrios que terminam provocando descontentamento na população, a chamada guerra econômica, principalmente em uma economia com tantos produtos importados", explica o economista com mestrado em Sociologia do Desenvolvimento pela Uarcis (Universidade de Artes e Ciências Sociais do Chile), Luis Salas.
Neste cenário, o governo enfrenta uma queda consecutiva em índices de popularidade, sendo mal avaliado por 68,9% da população, segundo a última pesquisa da Venebarómetro, divulgada pela agência de notícias AFP em 15 de março. Para Salas, esse é o reflexo de um "caldeirão" de fatos.
Um deles é a queda dos preços das commodities, como os grãos, os minérios e o petróleo. "A Venezuela, em 2012, terminou o ano com um crescimento de 5,5% no PIB. Era mais que o dobro da média mundial. Isso devido aos preços altos do petróleo, investimentos sociais e à política econômica do chavismo de estímulo à demanda", explica Salas.
Outro fator foi a morte de Hugo Chávez, em março de 2013, como explica o economista, para quem o fato foi um "golpe simbólico" no governo, pelo que ele representava para o país.
Soma-se a isso a "manipulação" do câmbio, que se tornou outro fator da atual crise. A Venezuela tem uma moeda fortemente desvalorizada ante o dólar. A moeda estadunidense é vendida, de forma paralela, nas ruas, por até 10 vezes mais em comparação com o câmbio oficial.
Endurecendo o discurso
Para Diego Sequera, jornalista e analista político do site Misión Verdad, a oposição percebeu que poderia endurecer o discurso contra Maduro visto que, embora alçado por Hugo Chávez, o político não tinha sua popularidade e estava em outra situação econômica.
"As primeiras experiências com as barricadas, toda a narrativa da crise começou por aí, e se fortaleceu com o decreto Obama", disse Sequera, referindo-se ao decreto executivo do então presidente dos Estados Unidos, de março de 2015, declarando a Venezuela uma "ameaça incomum e extraordinária" à segurança do país.
Mas é em dezembro de 2015 que a oposição confere o mais duro golpe ao governo Maduro, quando a MUD ganha a grande maioria das cadeiras da Assembleia Nacional, com 112 deputados contra 51 do PSUV. O fato praticamente paralisou o governo.
Desabastecimento
De 1999 a 2012 o governo Chávez logrou afastar do país um fantasma histórico que tirava o sono do venezuelano: o desabastecimento de alimentos. Embora o problema nunca tenha sido completamente sanado, visto que o país ainda importa, em média, 70% do que consome, o chavismo não poupou esforços no que chamou de impulso à segurança alimentar.
Segundo o próprio governo, o país já produz o que consome em quase 100% de frutas como mamão, limão, maracujá, melancia, etc; hortaliças, como pimentão, cebola, tomate, mandioca, e derivados do leite. Muito dessa produção é fortemente subsidiada e até produzida pelo Estado, que também tomou como política vendê-los e distribuí-los por redes de supermercados estatais.
Mas desde 2014 a falta de itens básicos nos supermercados e farmácias da Venezuela se agravou, atingindo diretamente a população mais pobre.
Agência Efe
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Um estudo da economista Pasqualina Curcio para o Banco Central do país identificou que, entre 2003 e 2013, houve um incremento das importações em mais de 500%, acompanhando o crescimento do consumo da nova classe média do país. Também ocorreu com a produção nacional de alimentos, que cresceu, nesses 10 anos, 25%.
Para Curcio, a falta de alimentos nas prateleiras e a escassez aguda que sofrem os venezuelanos, principalmente nos dois últimos anos, se deve basicamente à falta de iniciativa dos importadores (embora recebam dólares subsidiados para fazer compras fora e vender no país), à ocultação e ao contrabando de alimentos.
O economista Luis Sala concorda: "Nos últimos 10 anos, enquanto na Venezuela dobramos a importação de remédios, na Colômbia as importações se mantiveram praticamente estáveis. Muitos remédios são contrabandeados da Venezuela para a Colômbia, até para o Brasil, assim como os alimentos", denunciou.
Protestos e barricadas: as 'guarimbas'
Desde abril, quando se iniciou a nova onda de protestos oposicionistas, o governo conta 55 mortes relacionadas a esses embates. Entre os mortos, 14 são relacionados a confrontos violentos, oito a acidentes de trânsito relacionados às barricadas em pistas e ruas, seis relacionados a disparos de armas por parte das polícias, 14 relacionados a pessoas que transitavam próximas aos protestos, três policiais mortos e outros casos que estão sendo investigados.
As barricadas, chamadas de "guarimbas" na Venezuela, são o tema do momento. Elas derivam dos protestos, pretensamente pacíficos, chamados pela MUD. Sempre ocorrem após a marcha, que vem à frente com as lideranças oposicionistas. A rota dos protestos sempre é direcionada para um órgão público, o que faz com que as forças de segurança do governo se posicionem para interrompê-la e, consequentemente, aconteçam os embates.
Desde que a reportagem do Brasil de Fato chegou a Caracas, em um lapso temporal de sete dias, já foram cinco marchas convocadas, todas saindo da região leste da capital, onde se concentram os bairros de classe média e média alta.
O pesquisador e cientista social Carlos Lanz acredita que todas as ações da paralisação realizadas pela oposição são cuidadosamente planejadas como uma estratégia comunicacional.
"Estamos em uma guerra não convencional que tem um tripé: inteligência tecnológica, pressão psicológica e ações cinematográficas, que são as pessoas vestidas como se estivessem em uma operação especial para enfrentar as instituições, principalmente a polícia", disse.
Lanz se refere aos jovens vestidos com máscaras, luvas, escudos e armas artesanais, que rotineiramente entram em confronto com as forças policiais. "Ou personagens como uma fisiculturista que se vestiu de Mulher Maravilha e participou de protestos expondo seu corpo escultural e lançando pedras. Tudo é compulsivamente distribuído nas redes sociais", explica.
Reação do governo Maduro
Um aspecto muito importante e pouco explorado pela imprensa internacional sobre as eleições parlamentares de dezembro de 2015 é que, a despeito da vitória acachapante, a grande maioria dos deputados da oposição se elegeu por uma pequena margem de diferença, o que comprova que o chavismo, embora debilitado, ainda tem força e base social.
Outro aspecto é que a grande maioria dos prefeitos das pequenas cidades posiciona-se no oficialismo, o que reforça e mantém o chavismo em rincões do país.
A última pesquisa Interlaces, de 14 de maio, indica que para 83% dos venezuelanos, "não há novas lideranças na oposição", assim como 65% estão "de acordo" com esperar pelas eleições de 2018 para presidente. Além disso, 61% não confiam que a oposição possa superar os problemas econômicos do país.
Depois de ter passado por uma eleição apertada em 2013, por uma crise energética em 2014, por embates com a Assembleia Nacional, com a OEA (Organização dos Estados Americanos) e enfrentado forte desabastecimento em 2015 e 2016, Maduro colocou as cartas na mesa.
Na reunião da Opep (Organização dos Países Produtores de Petróleo) em 2016, Maduro foi um dos que mais defendeu uma redução na produção para, consequentemente, conseguir uma melhora nos preços do barril.
Em um esforço de reação, criou também em 2016 os Claps (Comitê Local para Abastecimento e Produção), uma iniciativa local que organiza a distribuição dos alimentos subsidiados pelo governo e incentiva a pequena produção.
Segundo os três entrevistados da reportagem, os Claps são um ponto positivo para o governo, por diminuir a atividade de vendedores de alimentos nas ruas por preços altos, os chamados "bachaqueros", e ter restabelecido a distribuição das cestas básicas nas comunidades e pequenas cidades.
Constituinte
Para sair das cordas no ringue político, Maduro lançou as bases legais para a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte, que tem sido fortemente rechaçada pela oposição.
Publicamente, o chavismo já começou a escolher seus candidatos que se inscreverão para concorrer a uma vaga na Assembleia.
A ação traz a oposição para o campo do embate político-eleitoral e deixa o governo em uma posição protagonista.
Assim, os próximos rounds serão, além da Constituinte, que será realizada em julho, as eleições para governador, em 8 de dezembro e, enfim, para presidente, em 2018.
Publicado originalmente no site do jornal Brasil de Fato
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