BUENOS AIRES — A recente decisão da Corte Suprema de Justiça da Argentina de favorecer um ex-militar preso por violações dos direitos humanos aplicando a chamada “Lei do 2 x 1” (que permite a redução de condenações) teve consequências inesperadas. Além de provocar uma reação unânime de rechaço por parte da sociedade argentina, a medida levou filhos de ex-repressores a romperem o silêncio e expressarem publicamente sentimentos como vergonha, ódio e rancor em relação a seus pais. A primeira a falar foi Mariana D (ela mudou seu sobrenome e preferiu não revelar sua nova identidade), filha de Miguel Etchecolatz, figura sinistra da polícia da província de Buenos Aires, condenado à prisão perpétua em 2006. Suas palavras tiveram forte impacto em outros filhos como Erika Lederer, que em artigo publicado na revista “Anfibia” propôs a união de “filhos de genocidas, com um objetivo inabalável: memória, verdade e justiça”.
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Pessoas como Mariana e Erika têm informações, conhecem o passado de seus pais e poderiam ajudar nas dezenas de processos sobre crimes da ditadura que continuam avançando nos tribunais. Para facilitar o contato, foi criada uma página na rede social Facebook chamada “Historias Desobedientes y con Faltas de Ortografia” (histórias desobedientes e com faltas de ortografia).
Clínica clandestina
Erika é filha do médico Ricardo Lederer, que trabalhou na clínica clandestina de Campo de Maio, onde nasceram muitos filhos de presas políticas, posteriormente entregues a famílias de militares ou próximas às Forças Armadas. Ou seja, o pai de Erika foi cúmplice do roubo de bebês, muitos dos quais ainda hoje, mais de 40 anos após o golpe de Estado de 1976, não conhecem sua verdadeira origem. “O relato de Mariana emociona, convoca e, de certa forma, obriga. Nos interpela a contar, a dizer o que sabemos, por pouco ou mal articulado que seja. Ajudar na construção da História é um compromisso coletivo. Ainda faltam aparecer netos, e corpos ainda devem ser despedidos. Ler o depoimento da filha de Etchecolatz gerou em mim, além da angústia pelas lembranças, a possibilidade de transformar essas lembranças em ação plena de sentido, o qual é mais útil e consequente”, escreveu Erika.
O pai dela suicidou-se em 2012, sem passar pelo banco dos réus. Este ano, quando o país relembrou, em 24 de março passado, o golpe que deu início à repressão mais violenta e atroz já vivida pelos argentinos, a filha de Erika, de apenas 9 anos, lhe perguntou, pela primeira vez, se seu avô estaria preso se não tivesse morrido. “Sim, respondi de forma imediata. Nunca a vi chorar como nesse dia. Algo tinha se quebrado em sua infância e não podia ser de outra maneira”, contou.
Ela, como muitos filhos de desaparecidos, teve uma infância dura, com medo, crises de asma e a permanente sensação de não encaixar em sua família. Erika foi a ovelha negra da família, a que se atreveu a enfrentar o pai, a fazer perguntas que incomodavam. Hoje ela diz: “Não o perdoo, não sei se o odeio.” Mas está disposta a concentrar esforços e energias na construção de um futuro melhor para as vítimas de uma ditadura que também destruiu sua família. (J.F.)
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