Política
Editorial
A Idade Média é nossa
O mundo passa mal, mas o Brasil muito pior. No país da casa-grande e da senzala, as quadrilhas tomaram o poder
A capa de dezembro de 2002 desaprovava a nomeação de Henrique Meirelles para o Banco Central. A capa de janeiro de 2009 sonhava com algo que não aconteceu
Volta e meia, ao deplorar o caos em que precipitamos, ouço como resposta que o mundo inteiro está mal, muito mal. Há, de fato, uma crise mundial cuja razão conhecemos de cor e salteado. Nesta moldura, o Brasil tornou-se uma caricatura neoliberal, com a decisiva contribuição do ministro Meirelles, o homem de todas as estações.
Não me consta, entretanto, que em inúmeros países, a começar pelos europeus, medre a Idade Média, bem ao contrário do que ocorre na terra da casa-grande e da senzala, onde é possível um golpe perpetrado pelos três poderes da República, apoiados pela propaganda midiática e por contingentes da Polícia Federal.
É de se excluir categoricamente que nos países civilizados um presidente ilegítimo e corrupto permaneça no poder e que uma liderança como a de Lula seja condenada sem provas.
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Prepotência e resignação
Cadê o povão?
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É inegável que diversas experiências mafiosas dão certo mundo afora e têm influência política, mas em lugar algum do mundo democrático lograram assumir o poder nacional. Aqui as quadrilhas chegaram lá com a bênção da casa-grande e agem como bem entendem para cuidar exclusivamente dos seus interesses. Mesmo assim permito-me supor que Totò Riina e Bernardo Provenzano agiriam com menos açodamento.
Sim, o mundo não atravessa uma quadra feliz, o Brasil, contudo, está infinitamente pior, único na sua desgraça se for possível compará-lo a países civilizados. Pergunto aos meus botões se a comparação é viável.
Respondem prontamente, não é. Este Brasil tem duas palavras para definir uma nação ainda inexistente, povo e povão, aquela refere-se a todos, como sustenta um caro amigo, a outra aponta a choldra, a malta, a plebe. E chamamos de classe média a porção minoritária da população, privilegiada, de pouco a demais, no confronto com o resto, largamente majoritário.
A civilização implica a presença de uma classe média muito ampla para englobar até mais de 70% dos cidadãos, politizados, lidos, em boa parte dispostos a sair às ruas para protestar contra a injustiça. Na terra da casa-grande, vai-se às ruas quando a Globo manda.
A civilização implica a presença de uma classe média muito ampla para englobar até mais de 70% dos cidadãos, politizados, lidos, em boa parte dispostos a sair às ruas para protestar contra a injustiça. Na terra da casa-grande, vai-se às ruas quando a Globo manda.
Na terra da casa-grande, 60 mil cidadãos são assassinados anualmente sem que o número espantoso tire o sono de quantos podem erguer muralhas em torno de suas vivendas e contratar seguranças e escoltas armadas.
A nata da sociedade nativa exibe frequentemente a mesma feroz ignorância dos aspirantes às suas benesses, o mesmo racismo e os mesmos preconceitos, e isso tudo explica o jogo fácil da propaganda midiática à falta de conhecimento e espírito crítico, ainda mais porque o ódio de classe sempre se revela no momento azado.
A medievalidade do País sustenta-se na insensatez e na incapacidade orgânica dos privilegiados de respeitar o semelhante, e o prêmio é a monstruosa desigualdade. E se Lula é condenado a nove anos e seis meses de prisão, o mesmo número dos seus dedos (de caso pensado?), não falta quem se regozije sem perceber que absolutamente único é o comportamento dos inquisidores curitibanos, a contar com o beneplácito de uma Suprema Corte de fancaria, impunes ao cometerem um crime judiciário.
Não é por acaso que um juiz destacado da Mani Pulite, na qual Sergio Moro diz inspirar-se, Gherardo Colombo, afirmou depois de uma visita ao Brasil no ano passado: “Se nos portássemos como o juiz e os promotores curitibanos, nós é que acabaríamos na cadeia”.
Como se sabe, Moro e Deltan Dallagnol foram treinados nos Estados Unidos. Não é que faltem na terra de Tio Sam áreas de excelência, a despeito da CIA, do Pentágono e dos estrategistas do Departamento de Estado, recantos frequentados pelos nossos inquisidores.
Confesso que não me desagrada a decadência do império, tão prepotente, arrogante e hipócrita. E Donald Trump, com seu topete a favor do vento sobre o deserto da calva, me traz à memória um dos tardios imperadores romanos, na linha de Calígula, que nomeou senador seu cavalo Incitatus.
O império definha, mas o Brasil reedita a sua vocação de súdito. Mais uma das consequências do golpe de 2016, e nada é mais simbólico de um desastre esculpido por Michelangelo em dia de grande inspiração do que o pacote do homem de todas as estações.
Desde a reeleição de Dilma Rousseff, ao clangor dos panelaços e dos idiotas de camiseta canarinho, pretendeu-se que bastava derrubar a presidenta para sermos felizes. O pacote de Meirelles não poupa quem quer que seja, a começar pelos senhores da indústria em demolição. Pagam seu grotesco pato amarelo.
Fonte: Carta Capital
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