Internacional
Debate
Venezuela: como encarar a realidade
por Vicente Ribeiro* — publicado 21/08/2017 12h44
Uma reflexão sobre os impasses no país vizinho a partir de um artigo de Gilberto Maringoni
Divulgação
A Constituinte convocada por Maduro não diminuiu os conflitos
O artigo de Gilberto Maringoni sobre a situação da Venezuela é representativo da forma como parte da esquerda busca se posicionar sobre a situação atual do país vizinho. Gostaria de debater seus argumentos e me contrapor ao que considero o maior problema do texto: a sensação de certeza com a qual deixamos sua leitura. A ideia de que não há mais nuances e de que devemos nos perfilar em um dos lados pode ser reconfortante. É, porém, insuficiente para analisar uma complexa realidade.
Na primeira metade dos anos 2000, Maringoni contribuiu para trazer à esquerda brasileira uma importante análise do processo bolivariano na Venezuela. Nela nos convidava a refletir sobre a existência de outros caminhos para além da aliança com os partidos tradicionais capazes de construir modos de governar e transformar, em contraste evidente com a experiência petista então em curso. A importância de apostar no protagonismo popular para não ser refém dos poderosos interesses estabelecidos teve como uma de suas expressões mais importantes o processo constituinte de 1999.
O atual processo constituinte passa longe disso. Desde sua convocação até as regras com as quais foram eleitos seus integrantes, mais do que 18 anos separam os dois processos. Chama a atenção a ausência de qualquer menção a essas diferenças. Vale perguntar: as regras da Constituinte importam? Importa que o sistema de votação, ao estipular um representante por município, distorça completamente a proporcionalidade em detrimento das cidades mais povoadas? Importa que em um sistema com voto territorial e setorial sejam excluídos desse segundo voto cerca de 5 milhões de eleitores?
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Essas perguntas podem ser multiplicadas, mas giramos ao redor da seguinte questão: importa que as regras democráticas básicas, expressas na Constituição de 1999, sejam abandonadas para criar uma nova Assembleia Nacional Constituinte, cujos plenos poderes contrastam com sua escassa legitimidade? Mais do que ganhar tempo, o governo Maduro, mesmo sem apoio popular, criou uma instância que lhe permite governar sem contrapeso. Os primeiros decretos passaram pela destituição da procuradora-geral e a retirada das atribuições que ainda restavam à Assembleia Nacional.
No âmbito da economia, a explicação de Maringoni passa das características estruturais de uma formação social dependente da exportação de petróleo para a ações ilegais dos comerciantes, deixando de lado a análise da política econômica do governo.
Tomemos o caso da política cambial. Há no país duas taxas oficias, de 10 bolívares para o dólar oficial e 2.970 para o DICOM (Divisas de Tipo de Câmbio Complementar Flutuante de Mercado). A quase totalidade das divisas é oriunda do setor exportador de petróleo, controlado pelo Estado, e a maior parte dos dólares é transacionado na taxa mais baixa, mais uma unidade contábil do que uma taxa de câmbio. Enquanto isso, a taxa do mercado paralelo ultrapassa hoje os 15 mil bolívares. A diferença entre a cotação do câmbio oficial e o paralelo é apresentada como resultado de uma ação de especuladores, sem definir a responsabilidade da própria política cambial do governo, o que impede debater quais mudanças devem ser realizadas.
O ponto de partida desse debate é a escassez de divisas devido tanto à diminuição do aporte do setor exportador quanto ao aumento do seu comprometimento com o pagamento da dívida externa. A diminuição das entradas via setor petroleiro está relacionada à queda dos preços no mercado mundial, ao aumento dos custos com insumos importados no setor e ao comprometimento de parte do petróleo extraído para o pagamento da dívida com a China.
As diminuídas divisas em dólar disponíveis para o restante da economia estão cada vez mais comprometidas com o serviço da dívida, restando poucos recursos para importações. A diminuição drástica das importações afeta tanto a oferta de bens de consumo básicos, como alimentos e medicamentos, quanto os insumos necessários para o funcionamento do aparato produtivo do país.
As consequências para o nível de vida da população são dramáticas. O Cendas-FVM (Centro de Documentação e Análise Social da Federação Venezuelana de Professores) estima que em julho a cesta básica de alimentos para uma família de cinco integrantes custava 1,4 milhão de bolívares, enquanto a soma do salário mínimo e do vale alimentação chegava tão somente a 250 mil bolívares (97 mil de salário e 153 mil de vale alimentação).
Uma das formas como o governo enfrenta a escassez de divisas é por meio da ampliação das concessões de recursos naturais para as corporações transnacionais do setor, aprofundando a condição do país de fornecedor de parcelas da natureza em troca de capacidade de pagamento no mercado mundial. O Arco Mineiro do Orinoco é uma das expressão do aprofundamento desse modelo e de sua diversificação para além do petróleo.
A polarização no qual Maringoni nos convida a perfilar não permite encarar esses elementos, bem como a urgência em ampliar as importações de bens de primeira necessidade no país. Esta passa por construir as condições internacionais para uma suspensão dos pagamentos do serviço da dívida externa venezuelana, para que as necessidades mais básicas possam ser atendidas e a economia possa começar a se reorganizar em um padrão menos dependente das importações. Contribuir para uma campanha neste sentido é talvez uma das tarefas mais urgentes que podemos realizar desde o Brasil. O pagamento de juros dos títulos venezuelanos pode esperar. As necessidades de alimentos, medicamentos e insumos para a produção da população venezuelana, não.
* É professor da Universidade Federal da Fronteira Sul
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