Conheça Ian Guest, testemunha privilegiada da história da MPB
Como vive e pensa músico parceiro de Vinicius de Moraes e Raul Seixas
Sua família chegou ao Rio de Janeiro em 1956, fugindo da Revolução da Hungria, um levante popular que se insurgiu contra o controle da antiga União Soviética. Naquele ano, 200 mil húngaros viraram refugiados e a parte que János Geszti (seu nome de batismo) escolheu foi aquele trecho da Rua Duvivier, em Copacabana, que compreendia o Little Club e o Bottle’s Bar, o lendário Beco das Garrafas, onde se iniciava uma pétrea revolução: a bossa nova. “Amadores da música, de bom gosto, se reuniam ali. Me tornei amigo de Luiz Carlos Vinhas, Luizinho Eça, Rubens Bassini, Sergio Mendes. Tive até carteirinha do Clube Jazz e Bossa”, conta Guest. “Eu tocava piano, tinha estudado música erudita, mas tinha vergonha de tocar qualquer coisa porque Tom Jobim tocava piano”, lembra o professor, que, mesmo escondendo o ouro, ainda se tornaria coautor de duas músicas de Vinicius de Moraes (Tempo de Solidão e Pergunte a Você).
Um conterrâneo de Guest, Zoltán Merky, que trabalhava como engenheiro de som na Odeon, arrumou para o garoto Ian um trabalho de técnico de estúdio na companhia de discos, com carteira assinada, bem remunerado. Guest trabalhava com equalização, compressão e importação de discos. A partir daí, ele entrou para a história da música brasileira. Durante o período áureo da Jovem Guarda, Ian, a contragosto, ajudava a gravar discos que se destinavam a alimentar o mercado. “Eu odiava o rock’n’roll. Era um gênero periférico, como chamavam na academia, a cada dois anos mudava, sumia, entrava outro”, lembra. “Mas a porra do rock’n’roll não mudou, tá aí até hoje. E eu detestava, discriminava. Para mim, refletia a caretice, era um som quadrado. Depois melhorou um pouquinho, com os baianos, a música tropicalista.”
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O pianista entrou em lutas e diatribes da música brasileira, incluindo os bossa-novistas
Mas ele compunha e todos sabiam que era um músico de mão cheia. Muitos recorreram às suas composições, como Trio Esperança, Trio Ternura, Lafayette e seu Conjunto. “E morria de vergonha, porque eles sempre escolhiam as piores músicas para gravar. Então, mudei de nome, passei a assinar apenas Átila.” Todo Meu Amor Você Levou, de Renato e Seus Blue Caps, é composição de Átila. Se Por Acaso Te Encontrar, sucesso de Márcio Greyck, de 1971, também.
Progressivamente, o trabalho começou a fazê-lo mudar de opinião sobre a música brasileira. Filho de um pianista de grande reputação na Hungria, George Geszti (que costumava enfiar lotes de lápis e borrachas dentro do piano para obter certo efeito de som), ele tinha o nariz empinado, mas foi perdendo a pose. “O Brasil me catequizou”, diz Ian. “Na Hungria, era profundamente desprezada, para nós da elite da música, e na Europa em geral, a música popular. Mas, quando cheguei ao Brasil, fiquei de queixo caído ao ver como as pessoas humildes não sabem como fazem e o que fazem, mas fazem, e lá na Hungria a pessoa sabia o que fazia, sabia como fazia, mas não fazia.”
Um dos encontros que ajudaram na “catequização” de Guest foi com Milton Nascimento. Ian tinha 20 anos e Milton foi ao Rio de Janeiro com um coral de Ouro Preto fazer um disco daquele coral na gravadora Odeon. Poucos, como o pianista, compositor e arranjador Ubirajara Cabral, já tinham total consciência da qualidade do garoto Milton. “Ninguém o conhecia ainda, foi antes do Clube da Esquina. O Milton Miranda, diretor artístico da Odeon, perguntou ao Milton se queria fazer um teste para gravar um compacto simples. E eu, como técnico de som, fui encarregado de gravar.”
No intervalo da gravação, Milton pegou no violão e Ian Guest foi ao piano, para experimentar. Ficaram ali tocando e improvisando. “E eu fiquei impressionado com a qualidade com que ele tocava e cantava. Aí eu perguntava: ‘O que é isso que você fez?’ Ele não sabia dizer. É isso: o Brasil faz, mesmo sem saber. E Milton tem aquela humildade, só fala quando é perguntado, diferente do carioca que só fala e não quer ouvir ninguém. Tenho muito contato com ele até hoje”, afirma.
Um dia apareceu Milton Banana, o famoso baterista. Ia gravar, mas faltava uma música no disco e ele pediu uma a Guest, que sabia que tinha composições. Ele tinha uma boa e Milton Banana resolveu gravar. A música não tinha nome e eles foram perguntar à secretária Helena. Ela deu de ombros: “Não sei, ora bolas!” Aí virou Ora Bolas. É a penúltima música do disco Balançando com Milton Banana Trio (Odeon, 1966). A canção está creditada a Ian Guest, e não a Átila. Ian foi, então, contratado pela CBS como coordenador do departamento nacional. Era o chefe dos outros produtores do estúdio, e foi assim que conheceu um baiano arretado que se tornou seu amigo inseparável: Raul Seixas.
Raulzito acabava de chegar de Salva-dor após o fracasso do disco Raulzito e Os Panteras (1968). Foi Ian quem entrou com Raulzito no estúdio para produzir um disco lendário da MPB, Sociedade da Grã-Ordem Kavernista (CBS, 1971), com Miriam Batucada, Edy Star e Sérgio Sampaio – contratado pela gravadora por Ian Guest. O disco termina com o som de uma descarga de privada, e foi Ian quem colocou o microfone dentro da privada, a pedido de Raul Seixas.
Seu trajeto passou a cruzar a linha evolutiva da MPB. “Fui eu quem colocou Angela Ro Ro na profissão de cantora, porque ela era atriz. O Sidney Magalhães também. Que é o Sidney Magal, fui eu que incentivei”, enumera. Também participou das lutas e diatribes da música brasileira, como “quando a bossa começou a fraquejar, queimar o cartucho, com letras cada vez mais complicadas, harmonias tomando conta da música, e não a melodia”. Daí surgiu um protesto chamado Música Nossa, nos anos 1970, no qual participou com Roberto Menescal, Taiguara, Beth Carvalho, Walter Santos e Chiquinho de Morais.
Ian Guest conta que foi demitido da gravadora por ter feito um “disco diferente”: Som, Sangue e Raça (1971), de Dom Salvador e Abolição. “Era uma coisa maravilhosa, de bom gosto”, explica. Em 1975, rumou para os Estados Unidos, para estudar na Berklee College of Music, em Boston. Ao voltar, não quis mais se enquadrar na produção de álbuns, sentiu que já estava esgotado aquele veio.
Já havia cursado composição na UFRJ e, ex-aluno de José Siqueira e Henrique Morelenbaum, então abriu sua própria escola num prédio histórico na Candelária. No auge, chegou a ter nove salas de aula. “Às terças, eu convidava os músicos que eu queria. Quem apareceu lá foi o Djavan. E Ney Matogrosso, Hermeto Pascoal, Cássia Eller: todo mundo se encontrava lá.”
Mas acabou o dinheiro. “Eu não sabia que vivia às custas da inflação, porque, no dia em que acabou a inflação, duas semanas depois eu tive de abandonar o lugar correndo.” Finalmente, descobriu que Minas Gerais era o lugar com que tinha sonhado a vida toda. “Eu pensava que o Rio de Janeiro era o Brasil”, diverte-se. Lá em seu refúgio mineiro, Ian Guest tem controlado sossego e vive sem pressa. Durante cinco anos, o cineasta Marcello Nicolato seguiu Guest, indo com o músico até sua cidade natal na Hungria. O resultado é o documentário, ainda inédito, O Imperfeccionista, produção da Macaca Filmes. Também já está para sair o primeiro disco autoral do músico, batizado como Aventura de Lápis e Borracha: Música Popular Camerística. Enfrentando um processo de surdez progressiva, além de perda de memória recente, Guest dribla as dificuldades com bom humor e alegria.
De olho num convite para a academia, ele diz que está rondando a Universidade Federal de São João del-Rei “como o cachorro está rondando o açougueiro”. Corre lá um processo de reconhecimento honoris causa. Esse título pode permitir que lecione. Guest é daqueles que detestam tecnologia. “Nunca aprendi a escrever música com computador, não me interessa nem um pouco. Não aceito qualquer tipo de relacionamento online, nenhum tipo”, confidencia, manuseando um celular flip sem tela antigo.
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ESCRITO POR JOTABÊ MEDEIROS
de Tiradentes, MG
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