Para
enfrentar desindustrialização e desigualdade, seria preciso reverter três
décadas de favores à oligarquia financeira. É exatamente o que Trump não fará
Valéria Lopes Ribeiro
Em fins dos anos 1970, muitos analistas
previam a derrocada da economia americana. as décadas seguintes, no entanto,
foram marcadas pela reafirmação da supremacia dos Estados Unidos, com a
manutenção de altas taxas de crescimento do país e o vitorioso enquadramento
das potências concorrentes Alemanha e Japão. Tal “enquadramento” não foi força
de expressão. Os EUA conseguiram fazer com que praticamente todos os países
submetessem suas políticas econômicas à política monetária americana,
obrigando-os a ajustes recessivos com consequências graves para a maioria das
dinâmicas econômicas nacionais dos países desenvolvidos e em desenvolvimento.
Sabe-se como as mudanças na política
monetária americana na época resultaram nessa retomada vitoriosa da hegemonia.
Em 1971, Nixon anuncia a Nova Política Econômica (NPE), acabando com o lastro
do dólar, bloqueando transações americanas com ouro e estabelecendo, em 76 o
fim do regime de Bretton Woods. Ainda assim a inflação interna e as baixas
taxas de juros contribuíam para a permanência do déficit e da desconfiança em
relação ao dólar. Foi então que, já em 1979, Paul Volcker, então presidente do
FED, concluiu o processo de recuperação do papel do dólar como moeda
internacional elevando os juros americanos, numa tentativa clara de atrair
fundos para ativos denominados em dólar.
É preciso ressaltar que, ao lado dessas
medidas no campo econômico, caminhava também um esforço claro por parte do
governo americano de adoção de medidas no campo estratégico militar. Os
programas armamentistas de alto conteúdo tecnológico, visando dobrar a União
Soviética e exaurir a capacidade financeira desse país, foram medidas de grande
importância para a recuperação da hegemonia americana.
As consequências destas medidas, seja no
campo monetário seja no campo estratégico-militar, foram de grande importância
tanto para a reversão do risco de ruptura da supremacia americana, sobretudo
após o término da Guerra Fria, como para a estrutura e dinâmica da economia
mundial.
TEXTO-MEIO
Quatro décadas depois de todo esse
processo, em 2016, a vitória de Trump traz novamente as contradições e os
problemas enfrentados pelos Estados Unidos.
Uma questão mais de fundo em toda essa
discussão pode ser encontrada exatamente na forma como ainda nos anos 70 os
Estados Unidos resolveram seus problemas e afirmaram sua hegemonia.
Naquele contexto, a supervalorização do
dólar permitiu que o FED retomasse o controle do sistema bancário privado
internacional, atraindo os capitais internacionais que haviam migrado para fora
dos EUA. Com isso surge a conjuntura do déficit orçamentário e o crescimento
exponencial do déficit comercial americano, o que, de fato, não representa
nenhum problema, nem naquela época, nem hoje. A economia detentora da moeda de
referência mundial não enfrenta limitações estruturais para o déficit
comercial, essa é a grande jogada do padrão dólar flexível.
Mas, ainda assim, esta mesma medida
alterou profundamente o contexto a partir do qual a supremacia passaria a ser
mantida a partir daquele momento, em dois sentidos fundamentais:
Primeiro: o fim do regime de Bretton
Woods e o padrão dólar flexível são as bases fundantes da expansão da
globalização financeira. Segundo: a política de sobrevalorização do dólar e a
estratégia de “importar barato” é a base do deslocamento da produção
manufatureira, principalmente para a região asiática.
Estes dois sentidos estão nas raízes dos
problemas estruturais americanos hoje.
A criação de um ambiente fortemente
propício à expansão financeira criou na economia americana e também no mundo um
amplo movimento de alavancagem no mercado de capitais. Surgiram diversos
instrumentos financeiros para os quais fluiu o núcleo da riqueza nos EUA e
também do resto do mundo, em detrimento da produção e da indústria. Nos anos 90
foi o presidente Bill Clinton quem estimulou ainda mais esse processo, com a
desregulamentação do mercado financeiro que beneficiou e vem beneficiando
apenas os 1% mais ricos.
A crise de 2008 é o ápice deste
processo, por meio qual desregulamentou-se completamente o mercado financeiro,
gerando uma bolha especulativa cujas consequências estão sendo pagas por todos
até hoje. A crise de 2008 também é o reflexo da dificuldade da economia
americana em gerar riqueza através de ganhos salariais e do trabalho, o que
resultou na expansão do crédito às famílias com baixíssimos rendimentos,
criando as bases para o crash da bolsa.
Enquanto isso, do outro lado do mundo,
na China, tudo mudava justamente a partir daquele segundo sentido que sustentou
a hegemonia americana: a política do dólar forte e o deslocamento da produção
manufatureira para a Ásia.
Ao contrário das economias
latino-americanas, a China não seguiu a orientação neoliberal. Abriu sua
economia de forma gradual e sob amplo controle do Estado. Atraiu investimentos
diretos e, com política industrial e de investimento público fortes inseriu-se
como produtora de artigos manufaturados para o mundo, ampliando o nível de
emprego, dinamizando também o mercado doméstico e retirando milhões de pessoas
da pobreza, rumo à urbanização. Esta dinâmica não poderia se dar sem o convite
das empresas multinacionais e dos Estados — Japão e, sobretudo EUA — tendo como
contrapartida não somente os mercados de demanda e oferta de bens, mas também o
financiamento do governo e do balanço de pagamentos através, dentre outros, das
amplas reservas acumuladas pelo Estado chinês.
Assim, percebe-se que a reafirmação da
hegemonia americana, ainda no final do século XX, permitiu aos Estados Unidos
manter o dólar como moeda mundial, sua liderança no campo militar e ainda na
produção de alta tecnologia de alto valor agregado.
Mas a partir da crise de 2008, quando o
país vem crescendo a taxas baixas, as contradições mais profundas aparecem de
forma cada vez mais evidente. A forte financeirização e todos seus malefícios
em termos de concentração de renda, aliada à mudança na divisão internacional
do trabalho, faz com que a economia americana não consiga crescer e gerar renda
para as camadas médias, nem de sustentar o sonho americano de ascensão e
riqueza. Mais além, o baixo crescimento, com desemprego e inflação remontam à
estagflação dos anos 70, condições materiais que ciclicamente voltam a acirrar
o conflito distributivo. A classe média americana — a mais prejudicada de todo
esse processo — foi exatamente o grupo
que garantiu a eleição de Trump.
Além de todas as notícias tristes em
torno da nova era Trump — ascensão do nacionalismo, da xenofobia e do
preconceito — resta a certeza de que será muito difícil para o novo presidente
superar todas essas contradições e expandir o volume de emprego e renda para a
população. Assim como sua oponente, ele não
parece disposto a enfrentar a concentração de renda e a acumulação
financeira. Nenhum dos dois poderia enfrentar a China, dada a complexa complementaridade
das duas economias hoje, em termos comerciais e financeiros.
Desde uma perspectiva mais realista,
nada leva a crer que os Estados Unidos adotarão agora, 40 anos depois, uma
estratégia conciliatória para superar suas contradições internas e externas,
que estão na raíz da própria hegemonia na economia política mundial mantida nos
anos 70.
* Valéria Lopes Ribeiro é professora
Adjunta do Bacharelado em Relações Internacionais da UFABC
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