Quem pode tirar o Brasil do lodo?
Saul Leblon
A guinada editorial dos últimos dias é tão seca que os
leitores e assinantes da mídia conservadora poderiam acionar o Procon por
propaganda enganosa.
Depois de incentivar as ‘expectativas otimistas dos
mercados’ com a promessa de que os rios verteriam leite e fios de mel desceriam
das encostas - tão logo o comando da nação retornasse às mãos dos livres
mercados - a emissão conservadora mudou o tom abruptamente para a chave
sombria.
Não foi isso que se vendeu ao longo de meses de
exortação ao golpe.
Mais precisamente há um ano, com o início oficial do
processo de impeachment, autorizado em 2 de dezembro de
2015 pelo impoluto Eduardo Cunha - então presidente da Câmara, ‘camera’,
segundo o infalível Moro - o que se ouvia e se lia eram sopros de euforia a
prometer a redenção imediata, tão logo a escolha de 54 milhões de brasileiros
fosse revogada.
O clima ruim que se espalha agora dos circuitos do
dinheiro para os labirintos do poder, e reverbera das redações para o país,
desativa esse compressor de expectativas otimistas.
‘Economia derrete’, disparou como se fosse a sirene de
um carro de bombeiro, o jornal Valor Econômico, no alto da página da semana
passada (01/12).
Quando um dos principais sopradores do otimismo
associados ao golpe diz que a nação derrete é melhor prestar atenção.
A mensagem sugere que reina o mais completo caos na
sala de comando.
A ‘decolagem’ política não ativou o módulo onde fica o
combustível econômico.
Os investidores externos não afluíram em filas nas
bolsas ou fora delas.
Ao contrário.
O Real fechou a última semana como a segunda moeda a
sofrer a maior desvalorização mundial, só superada pela lira turca.
O que significa isso?
Significa que ninguém precisa, ninguém quer o dinheiro
brasileiro: o país saiu do monitor das prioridades internacionais do capital.
Não são muito melhores as expectativas para 2017.
O desastre não seria completo se ao cheiro do otimismo
derretido não se misturasse o bodum de quem sente as labaredas do colapso
cozinharem seus dogmas.
‘As pressões por cortes de juros crescem’, diz o mesmo
Valor – o porta-voz mais explícito dos mercados - do alto de suas agora
abaladas convicções monetaristas.
Quando o herege era o governo da Presidenta Dilma,
‘especialistas’ nunca hesitaram em condenar o ‘intervencionismo lulopetista’,
em sua tentativa ‘artificial’ de forçar a queda dos juros.
A água chegou no nó das gravatas italianas e o
discurso mudou.
O que aconteceu em 2012, porém, não deve ser
esquecido.
Não por uma retaliação tola.
Argumentos não farão o golpe recuar.
Quem pode fazer isso é a rua.
Mas a memória é um pedaço do futuro que está em
disputa.
Evidenciar a irresponsabilidade conservadora no trato
das grandes questões nacionais cumpre uma função profilática no discernimento
social.
Não duvide: o que está em disputa é se a democracia -
leia-se a vontade da maioria e os instrumentos aos quais ela pode recorrer -
tem ou não capacidade de reordenar o passo seguinte do desenvolvimento
brasileiro.
O que o aparelho emissor do golpe nos tem dito há mais
de um ano é que ‘não’.
A democracia é um adereço para dias amenos, tempos
felizes de ventos alísios e temperança humana.
Não se ataca direto a participação da sociedade nas
escolhas que moldar o seu destino.
Identifica-se no PT a incapacidade, melhor, a
ilegitimidade para agir nesse tipo de travessia.
A instalação de uma falsa memória no socavão do
imaginário social é decisiva para isso.
É o que tem sido feito por um aparato diuturno de
destruição, desqualificação e criminalização de tudo aquilo que foi erguido,
conquistado e semeado desde 2003.
A ponto de segmentos do próprio campo da esquerda
terem assimilado a devassa como pauta e aderido à cantilena de que ‘é preciso
recomeçar o Brasil do zero’.
Quem recomeçar? Naturalmente, os organismos e átomos
primais não contaminados pela investida recente do ‘populismo’ no país.
O Mercado, os Juízes e Promotores acima de qualquer
suspeita, as grandes corporações internacionais, os tecnocratas etc.
É preciso disputar a memória com o chip do
esquecimento e da manipulação.
Uma verdade a ser reposta é que todas as tentativas
anteriores de se reordenar o desenvolvimento brasileiro – em condições melhores
e mais previsíveis do que as atuais - foram boicotadas pelos interesses que,
unificados em torno do golpe, agora jogam a toalha no caso do juro, por
exemplo.
À memória:
Em 2012, quando a Presidenta Dilma abraçou a agenda da
redução dos juros como um requisito à renovação da política econômica, a mídia
que hoje aquiesce para a necessidade de acelerar a queda das taxas abriu fogo;
Dilma insistiu, como noticiava O Globo em 09/04/2012:
‘O Brasil deve passar por uma fase de reordenamento de
todas as variáveis pouco competitivas. A redução dos juros (uma delas) é uma
questão de equilíbrio. Eu espero que haja um processo de convergência dos juros
para patamares internacionais’, explicava a presidenta diante da urgência de se
reorganizar a máquina do crescimento com ênfase no investimento, não mais no
consumo.
O governo apostou alto nesse jogo.
Tão alto que trincou de vez os laços com ‘os mercados’
(o dinheiro grosso a juro).
Enquanto Dilma exortava a banca, ferramentas indutoras
eram acionadas.
Em abril de 2012, a Caixa Econômica Federal (CEF)
sucedia o Banco do Brasil na redução das taxas em várias linhas de
financiamento.
Era um fogo de barragem do sistema financeiro estatal
(hoje em processo de desmanche pelo golpe) para emparedar as taxas na banca
privada.
Tratava-se, entre outras coisas, de forçar a queda do spread (leia-se, do megalucro) em todo o
mercado.
Os bancos privados tiveram que apresentar um plano à
sociedade nessa direção.
Fizeram-no a contragosto.
A coalizão contra Dilma começou a ser urdida nesse
braço de ferro em torno do lucro bancário (dos acionistas de bancos...).
Seu fracasso na urna em 2014 acionou o plano B, que
ora afunda a nação no lodo.
Esse ilustrativo capítulo da memória recente foi
apagado pelos escribas que ora admitem que o país ‘derrete’.
Importa reter – a bem da função pedagógica da memória -
que o governo Dilma e o PT também cometeram erros nesse capítulo.
O principal deles foi atacar o privilégio rentista
apenas com peso da indução estatal, sem recorrer ao apoio popular num confronto
muito mais político que econômico.
Ademais do boicote do establishment, o plano fracassou
por isso.
Mas a pertinência e a oportunidade estavam corretas.
A amplitude do desastre por não tê-lo feito na hora
própria pode ser avaliada agora pela intempestiva guinada da mídia, que pede a
aceleração daquilo que antes reverberava como anátema.
O paradoxo fica maior quando se sabe que as chances de
êxito então eram maiores que agora.
A dívida pública como proporção do PIB era
significativamente inferior à atual e havia superávit fiscal, ao contrário dos
R$ 170 bilhões de déficit contratados pelo golpe.
Qual a novidade ‘favorável’ hoje?
O desastre.
Todos os componentes da demanda e do consumo que
formam o PIB desabaram no terceiro trimestre.
Desde o início de 2014, quando se intensificou a
escalada conservadora para inviabilizar o governo, derrotá-lo nas urnas ou pelo
golpe, o PIB acumula um tombo de 8,5%.
A convicta previsão ‘dos mercados’ de uma volta do
crescimento em 2017 murcha sob o outono antecipado do golpe.
O banco com maior capilaridade no país depois do Banco
do Brasil, o Bradesco, já fala em um pífio 0,3% de crescimento para o próximo
ano.
Não há força de expressão na metáfora ‘derrete’.
O que há é um exército de 22 milhões de desempregados,
precários ou simplesmente gente que desistiu de procurar por uma vaga, pulsando
incerteza e revolta no metabolismo político.
O consumo acumula um tombo de 10%, sendo de 30% o
mergulho da taxa de investimento.
O presente murcha, o futuro definha.
É o lodo econômico.
A produção industrial teve o pior outubro desde 2013,
com retração puxada justamente pelo setor de bens de capital (queda de 2,2% no
mês e de 17,4% em 12 meses).
O dado antecipa novo tombo no investimento brasileiro.
Significa que cada dia de sobrevivência do golpe terá
um preço alto para a nação.
Aquilo que em 2012 teria um efeito catalisador
virtuoso, a queda nos juros, agora poderá ser insuficiente em um ambiente
político conflagrado, com elevada ociosidade industrial, famílias e empresas
endividadas, desemprego a galope, Trump amplificando as incertezas externas, a
cadeia do petróleo e as grandes empreiteiras esquartejadas pela ação no mínimo
irresponsável da Lava-Jato.
O Brasil é um país-náufrago que grita por socorro.
A disputa pela memória, que é também a do futuro, gira
em torno da pergunta: quem poderá ouvi-lo e, sobretudo, proceder ao resgate?
Já houve um momento assim.
Nos anos 80, o colapso econômico e político
sincronizado parecia engolfar a nação num atoleiro insuperável.
A resposta que rompeu o cadeado das impossibilidades
nacionais veio de onde terá que vir novamente: da aliança de amplos setores
decididos a não morrer no pântano ao qual a irresponsabilidade conservadora
arrastava a economia e a sociedade.
Quando esse salto venceu a hesitação e assumiu a forma
de uma aliança da rua com a democracia o Brasil ressuscitou.
Um sistema político ditatorial esgotado, acoplado a
uma bomba de sucção financeira para o pagamento da dívida externa, garroteava o
pescoço e a nossa alma nos anos 80.
Dessa mistura ácida nasceu a ‘década perdida’, um
termo imperfeito para designar um ciclo que engordou credores murchando a
sociedade, o que resultou num todo ainda mais desigual e excludente.
O golpe ameaça ir além na sua danação.
O que se anuncia agora é a necessidade de duas décadas
perdidas de igual cepa.
O prazo foi inscrito na PEC 55 como o tempo necessário
para debulhar a Carta Cidadã, atropelar o pacto social de 1988, triturar a CLT,
extirpar direitos e amesquinhar conquistas.
Dias de fúria e noites de assombração não deixam
dúvida: um ciclo da nossa história se esgotou, outro precisa ser pactuado.
Não se renda ao sofá, nem terceirize o leme: as
implicações dessa travessia marcarão todo o século XXI brasileiro.
A batalha essencial cabe nessa interrogação.
Quem vai modelar o país dos próximos 15 anos - o lodo
ou a insatisfação mobilizada da sociedade?
A lógica autônoma da ganância rentista? Ou as escolhas
do discernimento democrático, inteiradas das possibilidades e limites da nação?
Sim, há limites em jogo.
No momento em que de dentro das próprias fileiras do
golpe ecoam sinais de que é preciso atingir o núcleo duro da crise – a
dominância financeira que asfixia os interesses gerais da nação - é a hora de
uma frente ampla liderar a
sedimentação do que é essencial e crível ao lado do não negociável.
Não é um exercício retórico, mas uma construção de
força e consentimento a ser erguida nas ruas e praças.
A lógica oposta não saciará enquanto não abater, eviscerar
e desossar integralmente o espaço do desenvolvimento e da soberania brasileira
no século XXI.
As implicações são avassaladoras.
A doença rentista que hoje sabota, espreme e estreita
o alicerce social do emprego e do investimento consome 8% do PIB em juros por
ano.
A república rentista quer perpetuar esse desfrute.
Ele inviabiliza guinchar o Brasil para fora do lodo.
Para a atividade produtiva, por exemplo, significa um
garrote vil seccionando todas as suas artérias.
Daí segue-se o sabido.
A retração da atividade compromete a receita do Estado
e reduz a margem de ação fiscal do governo. Leia-se: direitos sociais e
infraestrutura.
A anemia do investimento público e da demanda popular
afugenta o capital produtivo.
A ideia de que um novo degrau de arrocho resolveria
isso, devolveria ao capitalismo brasileiro a leveza e a generosidade que ele
nunca teve, já pode ser medida em metros cúbicos de fracasso econômico, social
e institucional.
Sem freios e contrapesos de repactuação política, que
viabilizem a ação coordenadora do Estado, será impossível retomar o comando
democrático de um sistema econômico desordenado.
Panaceias conservadoras, do tipo ‘cortar na carne’, ou
a ilusão - à esquerda - na autossuficiente taxação dos ricos, transpiram
notória limitação diante do chão mole que ganhou profundidade pantanosa nos
últimos seis meses de desastroso poder golpista.
Cortando o que for possível, taxando o que for capaz,
ainda assim a sociedade se defrontará com dilemas superlativos diante de
urgências sobrepostas e interditos alargados pelos erros sucessivos cometidos
na aventura iniciada em 2 de dezembro de 2015.
O desassombro para negociar uma travessia crível
implica a honestidade de compartilhar flancos e riscos, dividir ônus e
legitimar salvaguardas – como a garantia do emprego, o poder de compra das
famílias assalariadas, os serviços públicos e os programas sociais; mas também
alongar o calendário das conquistas e dos sacrifícios.
Importante: ampliar a margem de manobra das políticas
de desenvolvimento inclui um esforço hercúleo para romper a unidade entre a
classe média e o capital.
Interesses não antagônicos à expansão do investimento,
da justiça social e da ativação do mercado de massa brasileiro devem ser
incorporados à agenda ecumênica de uma frente ampla.
Qualquer coisa menos que isso jogará a nação num
moedor interminável de crises e ajustes, que os números atuais do desemprego,
da receita, do investimento e do encolhimento industrial prefiguram e advertem.
O lodo pode vencer.
É preciso começar a drená-lo com a força e o
consentimento da maioria da nação. Hoje, amanhã pode ser tarde para abortar
décadas de retrocesso.
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