01/12/2016 10:59 - Copyleft
Leonardo BoffUm lado pouco conhecido de Fidel Castro
O legado de sua pessoa carismática permanecerá como referência para aqueles que se recusam a reproduzir a cultura do capital. Artigo de Leonardo Boff.
Cada coisa ou pessoa têm muitos lados. Como disse certa feita, cada ponto de vista é a vista de um ponto. Cada um ocupa um ponto neste planeta e na sociedade na qual está inserido. A partir deste ponto vê a realidade que este ponto permite ver. Assim que não podemos absolutizar nenhum ponto de vista como se fosse o único. É o que dá origem aos fundamentalismos e às discriminações.
Tal pensamento vale aos muitos pontos de vista que se estão fazendo da saga de Fidel Castro. Nenhum ponto pode cobrir todas vistas.
Há um outro elemento a ser considerado. Cada ser humano possui sua porção de luz e sua porção de sombra. Ou dito no dialeto da nova antropologia: cada ser humano é sapiens e simultaneamente demens. Vale dizer, cada ser humano é portador de inteligência e de um sentido de vida. É seu momento sapiens. E simultaneamente mostra desvios e contradições. É seu momento demens. Ambos sempre ocorrem juntos. Isso não é um defeito de nossa construção. É um dado objetivo de nossa realidade humana que deve sempre ser tomda em conta. Também vale quando ajuizamos a figura complexa de Fidel Castro: suas luzes e suas sombras.
Quero me referir alguns pontos a partir dos quais se me permitiu uma vista singular de Fidel Castro. O primeiro deles é a negação da TINA (There is No Alternative). O sistema imperante de viés capitalista diz:”não há alternativa a ele”. Ele representa a culminância das sociedades humanas. Fidel Castro mostrou que com o socialismo pode haver uma alternativa diferente daquela capitalista, hoje em radical crise de autoreprodução. A fúria dos USA contra Cuba e Fidel de destruir o socialismo cubano era para mostrar que não pode haver uma outra alternativa. Bem ou mal, com defeitos que conhecemos, o socialismo se apresenta como uma outra forma possível de organizar a sociedade.
Um segundo ponto a ressaltar, foi seu interesse pela Teologia da Libertação. Chegou a confessar que se no seu tempo houvesse a Teologia da Libertação (só começou partir de 1970) teria assumido esta leitura para montar a sociedade cubana. Sob pressão da Guerra Fria, foi obrigado a ficar do lado da URSS e daí ter que assumir o marxismo. Leu e anotou nossas principais obras, de Gustavo Gutiérrez, de Frei Betto, de meu irmão Frei Clodovis e das minhas. Os livros estavam todos anotados com várias cores. E ao lado uma lista com questões ou expressões sobre as quais pedia esclarecimentos.
Outro ponto relevante foi o convite que me fez, durante o tempo do “silêncio obsequioso” que me foi imposto em 1984 pelo ex-Santo Ofício. Foi o de passar 15 de férias com ele na ilha para aprofundar as questões da religião, da América Latina e do mundo. Era amigo do Núncio Apostólico. Logo que cheguei, na minha frente, lhe disse ao telefone:”Boff está aqui comigo. Eu mesmo vou zelar para que observe o “silêncio obsequioso”. Só vai falar comigo”. Efeitivamente visitamos toda a ilha com conversações que iam noite a dentro. Anotei quase tudo em três grossos cadernos, pois queria transformer o material num livro. Uns dias após a minha volta de Cuba, deixei os três cadernos no bagageiro do carro, enquanto ia trocar umas palavras com o Card. Dom Aloisio Lorscheider, hospedado na casa de um amigo em Copacana, coisa de uns 15 minutos. Ao regressar, o bageiro fora arrombado, não levaram nada, apenas os três cadernos. Minha suspeita é que órgãos de segurança daqui ou de fora sequestraram o material.
O outro dado mostra a dimensão de ternura de Fidel Castro, coisa que muitos testemunham. Tenho uma sobrinha com um tipo de reumatismo que nenhum medico conseguia tratar. Falei com o Fidel se era possível tentá-la em Cuba. Pediu-me todos laudos medicos daqui. Ele mesmo se encarregou de falar com médicos cubanos. Efetivamente não havia cura. Cada vez que me encontrava, a primeira coisa que pedia era: “como vai a Lola, sua sobrinha?” Essa memoria carinhosa e terna não é frequente em chefes de Estado. Geralmente onde predomina o poder não vigora o amor nem floresce a ternura. Com Fidel era diferente. Alegrou-se enormente quando lhe contei que um medico brasileiro inventou uma vacina cujo efeito colateral era curar este tipo de reumatismo.
São pequenos gestos que mostram que o poder não precisa fatalmente obscurecer essa dimensão tão profunda que é o enternecimento e a preocupação pelo destino do outro.
O legado de sua pessoa carismática permanecerá como referência para aqueles que se recusam a reproduzir a cultura do capital e com as injustiças que a acompanham, de ordem social e ecológica.
Leonardo Boff é articulista do JB on line e escritor.
Tal pensamento vale aos muitos pontos de vista que se estão fazendo da saga de Fidel Castro. Nenhum ponto pode cobrir todas vistas.
Há um outro elemento a ser considerado. Cada ser humano possui sua porção de luz e sua porção de sombra. Ou dito no dialeto da nova antropologia: cada ser humano é sapiens e simultaneamente demens. Vale dizer, cada ser humano é portador de inteligência e de um sentido de vida. É seu momento sapiens. E simultaneamente mostra desvios e contradições. É seu momento demens. Ambos sempre ocorrem juntos. Isso não é um defeito de nossa construção. É um dado objetivo de nossa realidade humana que deve sempre ser tomda em conta. Também vale quando ajuizamos a figura complexa de Fidel Castro: suas luzes e suas sombras.
Quero me referir alguns pontos a partir dos quais se me permitiu uma vista singular de Fidel Castro. O primeiro deles é a negação da TINA (There is No Alternative). O sistema imperante de viés capitalista diz:”não há alternativa a ele”. Ele representa a culminância das sociedades humanas. Fidel Castro mostrou que com o socialismo pode haver uma alternativa diferente daquela capitalista, hoje em radical crise de autoreprodução. A fúria dos USA contra Cuba e Fidel de destruir o socialismo cubano era para mostrar que não pode haver uma outra alternativa. Bem ou mal, com defeitos que conhecemos, o socialismo se apresenta como uma outra forma possível de organizar a sociedade.
Um segundo ponto a ressaltar, foi seu interesse pela Teologia da Libertação. Chegou a confessar que se no seu tempo houvesse a Teologia da Libertação (só começou partir de 1970) teria assumido esta leitura para montar a sociedade cubana. Sob pressão da Guerra Fria, foi obrigado a ficar do lado da URSS e daí ter que assumir o marxismo. Leu e anotou nossas principais obras, de Gustavo Gutiérrez, de Frei Betto, de meu irmão Frei Clodovis e das minhas. Os livros estavam todos anotados com várias cores. E ao lado uma lista com questões ou expressões sobre as quais pedia esclarecimentos.
Outro ponto relevante foi o convite que me fez, durante o tempo do “silêncio obsequioso” que me foi imposto em 1984 pelo ex-Santo Ofício. Foi o de passar 15 de férias com ele na ilha para aprofundar as questões da religião, da América Latina e do mundo. Era amigo do Núncio Apostólico. Logo que cheguei, na minha frente, lhe disse ao telefone:”Boff está aqui comigo. Eu mesmo vou zelar para que observe o “silêncio obsequioso”. Só vai falar comigo”. Efeitivamente visitamos toda a ilha com conversações que iam noite a dentro. Anotei quase tudo em três grossos cadernos, pois queria transformer o material num livro. Uns dias após a minha volta de Cuba, deixei os três cadernos no bagageiro do carro, enquanto ia trocar umas palavras com o Card. Dom Aloisio Lorscheider, hospedado na casa de um amigo em Copacana, coisa de uns 15 minutos. Ao regressar, o bageiro fora arrombado, não levaram nada, apenas os três cadernos. Minha suspeita é que órgãos de segurança daqui ou de fora sequestraram o material.
O outro dado mostra a dimensão de ternura de Fidel Castro, coisa que muitos testemunham. Tenho uma sobrinha com um tipo de reumatismo que nenhum medico conseguia tratar. Falei com o Fidel se era possível tentá-la em Cuba. Pediu-me todos laudos medicos daqui. Ele mesmo se encarregou de falar com médicos cubanos. Efetivamente não havia cura. Cada vez que me encontrava, a primeira coisa que pedia era: “como vai a Lola, sua sobrinha?” Essa memoria carinhosa e terna não é frequente em chefes de Estado. Geralmente onde predomina o poder não vigora o amor nem floresce a ternura. Com Fidel era diferente. Alegrou-se enormente quando lhe contei que um medico brasileiro inventou uma vacina cujo efeito colateral era curar este tipo de reumatismo.
São pequenos gestos que mostram que o poder não precisa fatalmente obscurecer essa dimensão tão profunda que é o enternecimento e a preocupação pelo destino do outro.
O legado de sua pessoa carismática permanecerá como referência para aqueles que se recusam a reproduzir a cultura do capital e com as injustiças que a acompanham, de ordem social e ecológica.
Leonardo Boff é articulista do JB on line e escritor.
Créditos da foto: reprodução
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