segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Homenagem (sem rum) para Fidel, o Martí do Século XX

01/12/2016 14:48 - Copyleft

Homenagem (sem rum) para Fidel, o Martí do Século XX

O 'hasta siempre, comandante' passa de Guevara a Castro. A comoção popular causada pela morte. O retrato de um país em voz baixa e sem som.


Martín Granovsky, para o Página/12, direto de Havana
reprodução
 
Às 19h em ponto começou a homenagem. Alguns acordes do hino cubano que interromperam milhares de conversas em voz baixa, surpreendendo os alunos dos colégios secundários que estão na Praça da Revolução, trabalhadores do Ministério de Transporte, agricultores de uma cooperativa da região de Camaguey. Uma voz se alastra no ambiente e pergunta várias vezes: “como se chama?”. E a resposta em uníssono: “Fidel!!”.
 
Quantas pessoas cabem na Praça da Revolução? Quantas centenas de milhares de cubanos escutaram tantas vezes e por tantas horas a Fidel Castro, desde o dia 1° de janeiro de 1959, no começo da Revolução Cubana? O locutor diz outra vez que a enorme convocatória foi pela emoção despertada pelo comandante Fidel Castro Ruz e a multidão grita sem delírio, acostumada a tantas manifestações, e ao mesmo tempo sem ter se preparado direito para este momento.
 
Embora a caravana tenha partido para percorrer o caminho até o cemitério de Santiago de Cuba, em sentido inverso ao que protagonizado pelo Exército Rebelde, a cerimônia na capital é o cenário da grande despedida.
 





Uma linda noite em Havana. O presidente equatoriano Rafael Correa fala de uma Cuba com a mais alta esperança de vida e sem nenhuma criança morando na rua, e lembra “o bloqueio criminoso de mais de 50 anos”.
 
De um lado está o Che. Do outro está Camilo. As duas silhuetas iluminadas e a famosa pergunta: “vou bem, Camilo?”. Foi durante um discurso, nos primeiros anos da Revolução, quando, em meio de um discurso, Castro se dirigiu a Camilo Cienfuegos, o comandante que morreria pouco tempo depois, com um toque de humor. O humor dos galegos quando se burlam deles mesmos, como os italianos e os judeus. Humor cubano. Humor argentino?
 
Estranho
 
Estranho ambiente em Havana, durante todo o dia do grande ato popular em homenagem a Fidel. Quando começou, às 21h (hora argentina), pelo segundo dia consecutivo, milhares de cubanos já haviam passado pelo enorme retrato do líder falecido, instalado há dois dias.
 
Muitos choram. Inclusive os jovens escolares, que sempre se destacam por seus uniformes arrumadinhos e coloridos, con calças e camisetas azuis e vermelhas, ou, no caso das meninas, por suas tranças, que delatam as mães que brincam de boneca todas as manhãs.
 
Pela tarde, quando as nuvens começaram a esconder o sol na Praça da Revolução, luga onde Fidel tantas vezes discursou, colunas trabalhadores, camponeses e estudantes já enchiam desde o meio-dia, cada metro quadrado de uma das praças de cimento mais famosas do mundo.
 
Estão sérios. Incômodos. Estranho?
 
Uma parte da estranheza é o que falta de Havana. Faltam, ou estão calados, os que cantam com sua violinha no Malecón, de dia e de noite. E muito mais de noite que de dia. Faltam, ou estão sóbrios, os que dariam a sua vida por uma garrafa de rum. Os que já a deram. As distintas etapas da fraternidade etílica que, como dizem os chilenos, terminam com declarações de amor eterno entre homens héteros. Faltam as piadas, e a música.
 
– Sabe, sinto falta da cervejinha – diz um moreno a outro, na esquina da Avenida Itália com a rua San Rafael, onde há um redemoinho de cubanos, num dos pontos onde funciona o wifi público, ou “uífi”, como pronunciam os cubanos.
 
– Eu também, mas hoje não pode – responde o segundo moreno.
 
– Disposição do governo? – pergunta o caucasiano, enviado especial do Página/12.
 
– Nãããããooooo – retruca prolongadamente o primeiro moreno.
 
– É que hoje não pode mesmo – continua, querendo dizer que não se deve, seria fora de hora.
 
– Aqui falta música – comenta uma senhora de uns cinquenta e tantos, na frente do Hotel Inglaterra, quase no começo da Havana Velha.
 
– Estamos de luto – completa ela depois.
 
Após algumas horas de cerimônia, é burrice perguntar sobre alguma queixa, qualquer que seja. O sentimento dominante é o da tristeza.
 
– Tínhamos a ilusória certeza de que Fidel nunca morreria – diz Yola numa síntese impecável.
 
Depois da tristeza, muito depois, vem um certo espanto. O espanto dos cubanos com eles mesmos. Não se adaptaram ainda à ideia de que esse senhor que tentou tomar um quartel em Santiago de Cuba (o Moncada, em 1953), e que depois esteve sempre presente em suas vidas, inclusive nas vidas daqueles que festejaram a sua morte em Miami, esse senhor esteja começando, agora mesmo, a se tornar uma lembrança.
 
As menções a José Martí, o líder morto em batalha durante a luta pela independência da Espanha, em 1895, foram uma constante, em associação ao legado de Fidel. Martí é um nome permanente.
 
“Criar é a `palavra de passe´ que marca esta geração”, diz a placa de um monumento no saguão de entrada da empresa pública de telefonia. `Palavra de passe´ sugere algo no sentido de `senha´, ou `código´. A uma forma mais restrita de organização. Mas a frase de Martí foi pública.
 
Uma mãe mostra ao seu menino de 6 ou 7 anos a credencial do correspondente do Página/12.
 
– Sabe a que (profissão) este senhor se dedica? – pergunta ela, mas a resposta da criança ignora as palavras “imprensa estrangeira” e se remete a um estranho parecido do nome.
 
– Claro, é um patriota cubano, um herói! – diz o pequenino. A mãe, uma mulata de trinta e poucos anos, gargalha, e nem se molesta em explicar a diferença entre “Martín” e “Martí”.
 
Na Praça da Revolução há bandeirinhas cubanas e retratos de Fidel. Mais bandeirinhas que fotos. Começa a haver mais retratos agora, com Fidel morto. Também há cartazes com frases como “Revolução é ter sentido do momento histórico”, ou “Revolução é ser tratado e tratar os demais como seres humanos”.
 
Castro estimulou a lembrança de Martí, que já era um herói para os cubanos em 1959 e porque a história cubana tem tempos que podem parecer estranhos para o resto da América Latina. Quando Martí morreu lutando contra os espanhóis, já havia advertido sobre o risco que os Estados Unidos significavam para a região, já no final do Século XIX. Havia vivido em Nova York, onde preparou a independência cubana da Espanha, e tinha um fino conhecimento sobre o destino manifesto que a elite estadunidense vinha cultivando a respeito do papel norte-americano sobre toda a América e em especial sobre o México, a América Central e as ilhas do Caribe.
 
Em 1899, quando Cuba conquistou sua independência, depois da morte de José Martí, já era domínio militar norte-americano. E um instrumento formal, a Emenda Platt – que Raúl Castro costuma recordar em seus discursos, como um nó que permite compreender o emaranhado da história – consolidou o direito de intervenção dos Estados Unidos em Cuba.
 
Martí foi morto aos 42 anos. O Che aos 39. Fidel aos 90, e conservou o poder e as responsabilidades em plenitude até os 80 anos. Diferente de Martí e Guevara, ele não foi morto a bala, e pode orientar políticas, conservar os símbolos até o final. Inclusive, sua última foto com um visitante estrangeiro é significativa. Se deixou retratar ao lado do presidente do Vietnã. A imagem contém ao menos dois paralelos. Um deles histórico: dois países pequenos que resistiram aos Estados Unidos com sucesso. No caso do Vietnã, já havia conseguido o mesmo contra a França. O outro tem a ver com o modelo: no processo chamado de “atualização”, vivido hoje por Cuba – o projeto de desestatizar algumas áreas sem perder as conquistas sociais e políticas –, os dirigentes cubanos costumam ressaltar que seu sonho seria emular o Vietnã, pela experiência de introdução da economia de mercado sem alterar substancialmente o papel protagonista dos mecanismos do Estado.
 
De qualquer forma, as perguntas feitas por esta reportagem, em diferentes lugares de Havana, durante todo o dia da cerimônia, entre os congregados na enorme Praça da Revolução e em suas proximidades, não abordaram especulações políticas. Sem pretensões científicas, a impressão à primeira vista é que os cubanos estão sentindo a morte de Fidel e ainda não pararam para racionalizá-la. A Internet avançou neste último ano, e reúne cubanos nos pontos públicos de wifi, mas as dificuldades ainda são consideráveis. Numa sociedade menos neurótica pela hiperconectividade, os ritmos são outros, a conversa cara a cara é mais habitual e a velocidade menos prioritária, já que é difícil ou inútil ser mais e mais veloz. Não se trata de exagerar as penúrias causadas pela informática, e sim de descrever uma situação. Ao menos até agora, a maior habilidade dos cubanos não é a de se conectar, e sim a de resolver. Resolver as questões do dia a dia, das mudanças na economia, da adaptação aos milhões de turistas por ano, dos mercados em pesos cubanos, pesos conversíveis e divisas paralelas a uma economia que tem dificuldades em se adaptar, porque alguma vez confundiu mercado com capitalismo e agora faltam empresas e sobra ainda poder aos ministérios.
 
Os cubanos, como os uruguaios antes, são hábeis torneiros mecânicos, talvez por necessidade. Precisam inventar as peças que faltam aos chevrolets dos Anos 50, e às vezes até mesmo a máquina para fabricar essas peças. Conviveram por anos com periculosidade ativa dos Estados Unidos a 144 quilômetros de distância, e agora a morte de Fidel indica um futuro no qual há uma decisão já tomada: o presidente Raúl Castro disse que não será reeleito em 2018. Quando chegar esse momento, pela primeira vez em 59 anos de Revolução, o Estado deixará de ter um dirigente de sobrenome Castro como seu líder máximo.
 
Imagens
 
Na orla da praia, alguns vendedores – não há muitos, em proporção ao momento histórico – oferecem fotos dos líderes da revolução e dos que são conhecidos como “os cinco”, os agentes de inteligência que se infiltraram entre os grupos terroristas de Miami e foram presos nos Estados Unidos. Os cinco agentes não negociaram sua culpa, segundo o costume judicial norte-americano. Como fazê-lo, se não haviam cometido nenhum crime? Como afirmar que eram agentes de inteligência se, por missão, não podiam fazê-lo? Passaram muitos anos presos e, com o relativo descongelamento das relações, acabaram sendo libertados.
 
Na Praça, Fidel começa a receber um sentimento que até então era reservado a Ernesto Guevara, após o assassinato do guerrilheiro argentino, em outubro de 1967. “Hasta siempre, comandante”, dizem vários cartazes pequenos que os cubanos silenciosos carregam. A voz de Carlos Puebla, o mais famoso dos cantores cubanos da Revolução, é a mesma que entoa “te canto / porque estás vivo, Camilo / e não porque você morreu”, terminando com a pergunta célebre: “vou bem, Camilo?”. Também se reflete na memória, nas memórias, porque não passam por nenhum alto-falante e te porque ninguém hoje conta o “aquí se queda la clara” (“aqui vem a real”) dedicada ao Che e sua querida presencia. Justamente terminava assim: “e com Fidel nós dizemos /até sempre, comandante”.
 
Momentos
 
Hoje porém, nada de canções. Não estão presentes na Praça da Revolução, enquanto os presidentes estrangeiros falam, traduzidos por um locutor de tom solene, quando falam em inglês, como o presidente da África do Sul. Tampouco houve música durante o dia no centro de Havana, o centro velho não colonial, nem nas ruas estilo Anos 30 do bairro Vedado, nem na Havana Velha, onde os cubanos reciclam todos os dias as construções herdadas da Cuba colônia, do Século XVI, ou do barroco, que chegou no Século XVII.
 
O próprio luto emociona os cubanos. É como se país se visse sem música, sem rum, sem cerveja, sem gente bailando nas ruas, como se não fossem os músicos que são. Esses músicos que normalmente sacodem os corpos com suas trompetas ou instrumentos de percussão, o segredo de uma velhice com sorrisos. Se não, perguntem a Compay Segundo. Agora está enterrado no cemitério de Santa Ifigênia – o mesmo lugar para onde serão levadas as cinzas de Fidel, no sábado – mas tocou e cantou até o último dia de sua vida.
 
Os cubanos passaram da ditadura de Fulgencio Batista à Revolução de 1959, viveram a hostilidade dos Estados Unidos, os iniciáticos Anos 60, os mais inflexíveis Anos 70, os estáveis Anos 80 e os sofridos Anos 90, após a queda da União Soviética e as dificuldades da vida cotidiana. Passaram pela agressão militar na Praia Girón e pelo embargo econômico. Pela ilha inacessível e pela abertura em favor do turismo. Viveram a Miami invisível, nos tempos de migrações cortadas, e a Miami presente, a poucos quilômetros da ilha. Porém, há algo nestes dias que nunca havia se passado nos últimos 63 anos. Durante estes anos, Fidel Castro, o José Martí do Século XX, nunca havia falecido.
 
Tradução: Victor Farinelli


Créditos da foto: reprodução

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