Fidel Castro, o Quixote que deu certo
Fidel, com seus erros e
seus méritos, abraçou o império da realidade objetiva e entrou para a história
Roberto Amaral*
O ancião alquebrado que acaba de nos deixar venceu todos os
adversários com os quais se defrontou, e sempre em condições extremamente
desvantajosas, e nenhum deles era moinho de vento, pois todos inimigos
ferocíssimos, riquíssimos, e o mais perigoso de todos, o império
norte-americano, armado com modernos escudos, lanças e mesmo garras e dentes
atômicos.
Fidel Castro, que o processo histórico transformaria no
principal líder latino-americano do século XX, líder libertário da relevância
de Ho Chi Minh e Nelson Mandela, foi, para os oprimidos de todos os
continentes, para o grande universo dos subdesenvolvidos e particularmente para
nós, latino-americanos, uma luz, uma esperança, animando vontades e ajudando a
realizar sonhos de libertação nacional.
Aquele bastião de pé dizia que a luta continuava.
Com sua partida, encerra-se a saga dos heróis cervantinos da
Revolução Cubana, Fidel, Camilo Cienfuegos – que não conheceu o poder – e
Ernesto ‘Che’ Guevara, que desprezou o poder e o repouso do guerreiro: deixou
saudade e saiu de cena admirado pelo que não conseguiu fazer; sua imagem é
icone de amigos e adversários, multiplicada pelo sistema que não conseguiu
abalar.
Fidel, com seus erros e seus méritos, foi o amálgama da
tríade, pois era o sonho sem limites, era a mística revolucionária, mas era
igualmente a práxis consciente de quem, sem renunciar ao sonho e mesmo à
aventura, dá os braços ao império da realidade objetiva.
A partir de Cuba – ilha irrelevante do ponto de vista
econômico, com seus 11,5 milhões de habitantes e 109.884 km2 de extensão (menor que o Ceará) em face de
gigantes como o Brasil e os EUA –, Fidel cumpriu, por décadas, com imensos
sacrifícios para seu povo, o papel de esteio da luta anticolonialista e
anti-imperialista, indispensável para a construção de um mundo socialmente
menos injusto. Em quase toda a África os soldados cubanos estiveram lutando –
Angola é o exemplo mais relevante – em defesa dos processos de libertação
nacional.
Como poucos líderes revolucionários, Fidel sobreviveu à sua
obra e morreu como vencedor, e, como todos os vitoriosos longevos pagaria alto
preço no julgamento de seus contemporâneos. Ainda aguarda o crivo da história.
Venceu antes de tudo a ditadura luciferina de Fulgencio
Batista, o criminoso desvairado, sem limites, encerrando décadas de
assassinatos, torturas e toda sorte de barbárie. Venceu reiteradas vezes o
poderosíssimo império americano, distante apenas 150 quilômetros de sua costa:
venceu o general Dwight Eisenhower, o primeiro presidente a decretar embargo comercial
contra Cuba (1960), venceu John F. Kennedy e a invasão da Baía dos Porcos
(1961), venceu Richard Nixon e 634 tentativas de assassinato comandadas pela
CIA (O Globo, 27/11/2016); venceu todos os presidentes americanos
contemporâneos a ele – todos seus adversários e todos tentando a destruição do
projeto cubano de regime socialista, bem como tentando sua eliminação física.
Cuba e Fidel, a partir de certo momento uma unidade,
sobreviveram à queda do Muro de Berlim, à debacle da União Soviética e à transição
da China para o capitalismo de Estado. Sobreviveram à Guerra Fria e à chantagem do conflito
atômico. Sobreviveram ao cerco das ditaduras latino-americanas instaladas em
nosso continente pelos Estados Unidos nos anos 1960-1970.
Cuba, enfim, superou mais de 50 anos de cerco
político-econômico (em 1962 os americanos decretam embargo econômico total à
Ilha), diplomático e militar da maior potência do mundo, sobreviveu à crise do
socialismo real e à globalização. Derrotou as oligarquias, os insurgentes, os
sabotadores internos e externos.
Ao funeral de Fidel – liderança que os cubanos dividem com
parcelas significativas das grandes massas de nossos países –, comparece um
povo respeitado, soberano e solidário, orgulhoso de sua trajetória e consciente
de seu papel na história. Este, seu legado.
Com a exceção da Revolução Soviética de 1917, e ao lado
certamente da Guerra do Vietnã, nenhum outro processo social terá influenciado
tanto o mundo, e principalmente nosso continente, quanto a Revolução Cubana e
nenhum líder exerceu tanto fascínio entre as multidões de jovens esperançosos
quanto Fidel.
Nenhum líder permaneceu no pódio por tanto tempo, e não
conheço outra identificação tão profunda, tão íntima entre o líder e sua gente,
entre a história do líder e a história de seu país. E muito raramente um líder
terá sido tão sujeito da história, artesão dos fatos, cinzelando as
circunstâncias.
A Cuba de hoje resolveu problemas que ainda se agravam em
países relativamente ricos, como o nosso: erradicou a miséria e o analfabetismo,
universalizou o acesso à saúde de qualidade (apontado ao mundo pela OMS como
exemplo a ser seguido) e à educação. A Cuba que Fidel Castro, Camilo Cienfuegos
e Ernesto “Che” Guevara libertaram no réveillon de 1958-1959, porém, era,
naquele então, apenas o maior prostíbulo do Caribe, balneário de gângsteres
controlado pela máfia e pelo tráfico, país sem economia própria, sem indústria,
limitado à monocultura do açúcar.
Ícone da luta anti-imperialista, ícone da revolução em nosso
continente, e de uma revolução socialista, símbolo da preeminência da vontade
política sobrelevando às teorizações, Fidel Castro, líder de uma revolução
impossível que, no entanto se fez real, foi o grande nome de minha geração que
em 1960 ingressava na universidade.
Cuba era a nossa Dulcineia, a ínsula que o sonho do cavaleiro
nos prometia. Cuba era uma esperança, sua resistência, sua sobrevivência valiam
como o certificado de que eram possíveis e viáveis todos os nossos sonhos de
jovens socialistas que logo seriam chamados para o enfrentamento da ditadura
militar instalada em 1964.
Visitei Cuba por diversas vezes, em tempo de bonança e em
tempos de “período especial” – assim chamado aquele que se sucedeu ao suicídio
da União Soviética. Visitei Cuba como dirigente político, quando, com Jamil
Haddad, estava incumbido da tarefa de reorganizar o Partido Socialista
Brasileiro, que consignava em seu programa o compromisso com a defesa da
Revolução Cubana.
Foram muitas as delegações trocadas entre o PSB – então um
partido de esquerda – e o Partido Comunista Cubano. Conheci e convivi com seus
principais líderes. Em algumas oportunidades pude viajar por suas províncias,
conversar com sua gente, visitar suas escolas e universidades, seus centros
cívicos, conviver com seus estudantes e intelectuais, dialogar, debater,
discutir. Testemunhei suas dificuldades e pude acompanhar a dedicação
majoritária em torno do grande projeto.
As circunstâncias me ensejaram vários encontros – longas
conversas, sem hora para começar e sem hora para terminar – com o Comandante,
em Brasília, em São Paulo e principalmente em Havana. No primeiro desses
encontros, Fidel disputou com o senador Jamil Haddad, então presidente do PSB,
quem mais conhecia o programa siderúrgico brasileiro.
Visitei a Ilha outras vezes para participar de congressos e
seminários diversos. Na última vez que estivemos juntos, eu integrava uma
delegação de escritores e políticos brasileiros que comparecia a um congresso
latino-americano. Nosso bate-papo começou por volta das 22h e só terminou em
torno das 4-5 horas da manhã. Nesse encontro, Fidel teve a oportunidade de
discorrer, para uma plateia espantada, sobre o quadro político de cada um de
nossos países. E ele, só ele assim, grande parte do tempo falando de pé.
Sem maiores ilusões quanto à supremacia da práxis, nos
chamava a atenção para os dias vindouros, difíceis, dizia ele para nossa
surpresa coletiva, a reclamar de todos, militantes de esquerda, muita reflexão,
muita produção teórica. Muita recuperação das lições da História. Aquele homem,
por excelência homem de ação e chefe de Estado nos ditava a lição de Engels:
“Não poderemos prever o futuro senão quando tivermos compreendido o passado”.
Permito-me reproduzir aqui algumas palavras do prefácio que
tive a honra e o prazer de escrever para o belo livro de Cláudia Furiati (Fidel
Castro – Uma biografia consentida):
“Montado no Rocinante que as circunstâncias lhe permitiram, à
frente de pequeno exército de desvairados, vestido apenas na armadura de uma
paixão desenfreada por sua Dulcineia, Fidel é um Quixote moderno, o cavaleiro
da triste figura, apólogo da alma ocidental que deu certo, derrotando não
moinhos de vento, mas dragões verdadeiros, os quais, porém, vencidos, renascem
para a luta, e o líder cubano, tanto quanto o herói cervantino, não conhece a
paz, mas sua Dulcineia permanece preservada. Não economizou sonhos, dores e
meios”.
* Cientista político, escritor, ex-ministro de Ciência e
Tecnologia.
Blog do Roberto Amaral
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