Fidel
Rodrigo Freire*
Desde a vitória da Revolução Russa em
1917, o comunismo, como movimento político, impactou os rumos da história do
século XX, como bem ensina o historiador Eric Hobsbawm na sua magistral obra
“Era dos Extremos”. Para o bem e para o mal, é preciso que se diga. O
surgimento do Estado do Bem-Estar Social na Europa ocidental – e sua variante
rooseveltiana nos Estados Unidos ainda da década de 1930 – pode ser entendido
não apenas como uma resposta à crise do capitalismo de 1929, mas à real
possibilidade de surgirem novas revoluções bolcheviques sobre os escombros do
liberalismo econômico e do nazi-fascismo, em pleno berço do capitalismo. O
nazismo alemão e o fascismo italiano não apenas nutriam aversão à democracia
liberal, como compartilhavam um ódio colossal ao bolchevismo – o que
possibilitou a formação da aliança vitoriosa da II Guerra Mundial entre os EUA,
o Reino Unido e a URSS.
Não obstante, após o fim da II Guerra,
os antigos aliados cindiram o mundo na “Guerra Fria”. No afã de impedir a
expansão do comunismo, por exemplo, o governo estadunidense protegeu e recrutou
para seus serviços secretos, ainda na década de 1940, antigos oficiais
nazistas, criminosos de guerra como Klaus Barbie, um dos comandantes da invasão
nazista da França, cuja ação lhe valeu o título de “carniceiro de Lion”. E
apoiou golpes de Estado que resultaram em violação de direitos humanos em todas
as partes do mundo, e na América Latina em particular.
Do seu lado, os soviéticos também
apoiaram e financiaram movimentos revolucionários mundo afora – guerrilheiros,
democráticos ou terroristas -, mas também souberam agir com realismo suficiente
para não apoiá-los quando contrariassem seus interesses de intercâmbio
comercial com países ocidentais. Realismo político e conquista de novos espaços
de influência, mais que ideologia ou princípios, foram as premissas centrais da
Guerra Fria, parte a parte. Mas a Guerra Fria não teria ocorrido sem a
existência do fenômeno político do comunismo.
A Revolução Cubana de 1959 teve para a
história da América Latina em particular o mesmo impacto que a Revolução Russa
teve para a história mundial. E Fidel Castro foi seu maior personagem,
comandando o Estado cubano até renunciar em definitivo aos seus cargos
públicos, por razões de saúde, em 2008. Após esta renúncia, passou a viver com
mais descrição, mas sem se afastar por completo da vida pública, na qual
intervinha com artigos, entrevistas e encontros com personalidades nacionais e
estrangeiras – entre estes, o Papa Francisco, que fez visita a Fidel em sua
casa, quando da sua viagem oficial a Cuba, em 2015. Cumpriu, assim, a promessa
que fez ao povo cubano – e ao mundo – na sua carta-renúncia de 2008: “Não me
despeço de vocês. Desejo apenas combater como um soldado das idéias.
Continuarei escrevendo sob o título 'Reflexões do companheiro Fidel'. Será uma
arma a mais no arsenal com a qual se poderá contar." Nada que possa se
comparar, entretanto, com sua dura rotina como chefe de Estado, notabilizado
pelos longos discursos. Com sua morte, desaparece o último grande líder
comunista ainda vivo, uma referência central para a esquerda latinoamericana.
É importante lembrar que Fidel não foi
sempre comunista. Sua identificação inicial era como nacionalista, e ser
nacionalista em Cuba nos anos 1950 – como, de resto, na América Latina –
significava afirmar posições em desacordo dos interesses imperialistas dos
Estados Unidos, que mantinha com Cuba em particular uma relação de semi-colônia,
uma espécie de balneário que lhe servia de cassino e prostíbulo, controlado
pela máfia de ambos os países. O caráter socialista da Revolução Cubana só foi
afirmado no início dos anos 1960, após os Estados Unidos terem submetido a Cuba
revolucionária a boicotes e isolamento econômicos e tentativas de invasão e
golpes de Estado, numa seqüência que se iniciou logo após os primeiros momentos
da revolução. A partir de então, Fidel pronunciou seu famoso discurso na
Assembléia Geral da ONU em 1960, onde declarou a abertura de relações
comerciais com a URSS, que logo evoluíram para a afirmação do caráter
socialista da Revolução, a integração de Cuba ao bloco socialista e a fundação
do Partido Comunista Cubano em 1965, incorporando as distintas organizações revolucionárias
de 1959.
Nunca interessou aos Estados Unidos a
existência na América Latina de um governo que se afirmasse politicamente por
uma posição de autonomia frente aos interesses yankees estabelecidos no
continente. Essa mesma posição lhes levou a apoiar as forças nacionais que
fizeram golpes civis-militares em distintos países latino-americanos, como no
Brasil (1964) e no Chile (1973). Fidel, portanto, personificou o sonho de
libertação do imperialismo, da afirmação da soberania nacional e da auto-determinação
dos povos na América Latina, perfilando-se, assim, no mesmo panteão de líderes
como Simón Bolívar e Che Guevara, seu companheiro de armas e de construção do
Estado revolucionário. E também encarnou o mito (e o sonho) do guerrilheiro
romântico que se transmuta em chefe de Estado, comandante da Revolução. Não à
toa, inspirou tantas gerações. Para Lula, Fidel foi “o maior de todos os
latino-americanos”. Eu não chegaria a tanto, considerando que personagens como
Salvador Allende foi seu contemporâneo na política, e que existem tantos
“outros grandes” latino-americanos lutando pela integração e pela
autodeterminação da região não pelo mundo da política, mas pelas artes, por
exemplo. Mas, entre estes todos, Fidel certamente está entre os maiores.
Raul Castro, irmão, companheiro de
guerrilha e sucessor de Fidel no comando do governo cubano, já deixou sua marca
no século XXI. A retomada das relações com os Estados Unidos no governo do
presidente Obama e a mediação do acordo de paz entre as Farc e o governo da
Colômbia colocam o nome de Raul entre os grandes personagens desse início de
século. Já Fidel é uma personagem principalmente do século XX, um líder cubano
e latino-americano da época da Guerra Fria, e suas opções políticas devem ser
assim consideradas. Como exemplo negativo deste fato, está a odiosa homofobia
que marcou o regime cubano até o início dos anos 1980, que condenava
homossexuais cubanos a campos de concentração. Era o machismo latino-americano
encontrando-se com o stalinismo, numa mistura que não tinha nada para dar bem.
Esta é uma realidade já bem retratada na literatura cubana, seja de dissidentes
como Reynaldo Arenas, seja de Leonardo Padura, escritor contemporâneo que, a
despeito de ter optado por viver e morar em Cuba até hoje, escreve e publica
sobre o cotidiano do seu país e as contradições do regime político cubano com
uma liberdade que não são compatíveis com a narrativa de um governo
“totalitário” que aparece no discurso de gente como, por exemplo, Yoani
Sanchez. Lembremos também do cinema cubano tratando do mesmo assunto, em
“Morango e Chocolate”, filme do tradicional diretor Tomás Gutiérrez Alea
(revolucionário e crítico do regime a um só tempo), que foi lançado antes mesmo
de “Antes do Anoitecer”, a cinebiografia de Reynaldo Arenas, inspirada no livro
homônimo do escritor, produzida nos Estados Unidos, com o espanhol Javier
Barden no papel principal.
A Cuba contemporânea, em matéria de
liberdade de produção artística e difusão do pensamento, está a léguas de
distância do seu passado recente - de antes do fim do socialismo real - e
também de ditaduras comunistas mais fechadas, como a Coréia do Norte. Desde o
fim da década de 1980, foram feitas autocrítica e revisão de práticas pelo
regime cubano – e pelo próprio Fidel – tanto quanto à homofobia como quanto à
liberdade religiosa. As visitas de três papas e as missas públicas celebradas
por eles na Praça da Revolução são a maior expressão midiática e de massas
dessa liberalização do regime cubano. Assim como também o é a apresentação dos
Rolling Stones em Havana, em show célebre em março de 2016. Na ocasião, Mick
Jagger afirmou: “Sabemos que antes era difícil escutar nossa música em Cuba,
mas aqui estamos. Os tempos estão mudando, não?”. Ninguém imagina esses
setentões do rock’n’roll tocando em Pyongyang, e Paul McCartney só foi tocar em
Moscou após o fim da URSS – mesmo que os discos dos Beatles fossem
contrabandeados para Moscou desde muito antes. Mesmo assim, não se justifica
que ainda persistam em Cuba fenômenos de censura, particularmente no controle
de sites da internet.
Se Fidel é uma personagem identificada
principalmente com o século XX, também o é o regime político que ele criou.
Para a esquerda do século XXI, o socialismo só pode ser sinônimo de
democratização radical do Estado e das relações sociais, da afirmação das
amplas liberdades individuais e políticas, do desenvolvimento sustentável e da
luta pela plena emancipação humana de todas as formas de dominação – de classe,
de gênero, de raça, de religião. Ou seja, um projeto que incorpora as melhores
tradições do liberalismo político e da afirmação histórica dos direitos
humanos, onde o autoritarismo e o dirigismo em matéria política e econômica não
podem ter vez (diferenciando “dirigismo” de “regulação”, que fique bem entendido).
Sob este ponto de vista, Cuba não pode
mais ser considerado um “farol”, como o foi por boa parte da esquerda
latino-americana a partir dos anos 1960. Mesmo assim, a bravura com que
resistiu à pressão imperialista dos Estados Unidos por todos estes anos, e seus
exemplos de solidariedade e de bem estar-social - com a erradicação do
analfabetismo, a universalização do acesso à educação e à saúde e os avanços da
sua medicina - são feitos fenomenais para seu povo e seu governo, e servem como
inspirações legadas por Cuba e por Fidel para a esquerda desse século XXI. E é
por isso que Fidel desaparece tão querido e respeitado pela maioria do seu povo
– e por nosotros latinoamericanos de esquerda.
Pensemos nesse momento que o Brasil
enfrenta um golpe de Estado. As primeiras medidas anunciadas pelo ilegítimo
governo de direita que se instalou são todas no sentido de esvaziar as
iniciativas de afirmação da soberania nacional que haviam sido construídas no
último decênio – do pré-sal à indústria naval -, de enviar sinais de
aproximação passiva e inequívoca com os Estados Unidos e de desmantelamento da
Constituição Federal, para eliminar os traços de bem-estar social e de proteção
do trabalho contra o capital que ali estavam inseridos. Alguma dúvida do porquê
de Fidel despertar tanto ódio dos governos e das elites dos Estados Unidos e da
América Latina?
Uma coisa está certa: acreditar que a
direita americana se opõe ao regime cubano pelas violações aos direitos humanos
por ele cometidas desde 1959 equivale a acreditar que um governo liderado por
Temer, Geddel, Jucá, Padilha e Moreira Franco teria como norte o combate à
corrupção no Brasil! O ódio que Cuba desperta nas elites é pelo que seu regime
político representa em matéria de soberania, autodeterminação e redução das
desigualdades para seu povo. Não é pequena a lista de regimes violadores dos
direitos humanos que os Estados Unidos e seus aliados na região apoiaram e
apóiam, e nunca é demais esquecer que a principal violação dos direitos humanos
no território cubano deste século XXI é praticada na base militar yankee de
Guantánamo.
Para mim, que nasci no último quartel do
século XX em um ambiente familiar de esquerda, local político, cultural e
social de onde continuo a observar o mundo aos 40 anos de vida, Fidel sempre
serviu de referência e, algumas vezes, de inspiração. Lembro-me perfeitamente
de uma dessas vezes. Era 1992, e o Brasil sediava a Eco 92, conferência da ONU
sobre meio ambiente e desenvolvimento sustentável. Parte da esquerda
brasileira, particularmente aquele setor mais convencional, identificado com a
ortodoxia comunista, denunciava a Eco 92 como um evento imperialista, mais uma
tramóia para justificar a dominação dos povos do mundo subdesenvolvido.
Adolescente que eu era e militante do movimento estudantil secundarista, estava
sinceramente influenciado por esta tese. Até ler o discurso de Fidel na Eco 92,
publicado em uma revista então editada pelo Sebo Cultural aqui de João Pessoa.
Reproduzo aqui parte desse célebre discurso:
“Uma importante espécie biológica está
em perigo de desaparecer devido à rápida e progressiva liquidação de suas
condições naturais de vida: o homem. (...) É preciso salientar que as
sociedades de consumo são as principais responsáveis pela atroz destruição do
meio ambiente. (...) A pressão populacional e a pobreza conduzem a esforços
desesperados para ainda sobreviver à custa da natureza. É impossível culpar
disto os países do Terceiro Mundo, colônias ontem, nações exploradas e
saqueadas hoje, por uma ordem econômica mundial injusta. A solução não pode ser
impedir o desenvolvimento aos que mais o necessitam. (...) O intercâmbio
desigual, o protecionismo e a dívida externa agridem a ecologia e propiciam a
destruição do meio ambiente. (...) Menos luxo e menos esbanjamento nuns poucos
países para que haja menos pobreza e menos fome em grande parte da Terra. Não
mais transferências ao Terceiro Mundo de estilos de vida e de hábitos de
consumo que arruínam o meio ambiente. Faça-se mais racional a vida humana.
Aplique-se uma ordem econômica internacional justa. Utilize-se toda a ciência
necessária para um desenvolvimento sustentável sem contaminação. Pague-se a
dívida ecológica e não a dívida externa. Desapareça a fome e não o homem.”
É certo que não aparece aí nenhuma
crítica - necessária - ao modelo de desenvolvimento praticado pelo socialismo
real, onde o respeito ao ambiente e ao modo de vida dos povos e das comunidades
tradicionais nem sempre foram variáveis consideradas. É de se lembrar que em
1992 o mundo estava a poucos anos da tragédia de Chernobyl. Mesmo
assim, estavam presentes nesse discurso de Fidel as principais premissas do
desenvolvimento sustentável, que seriam consagradas na Agenda 21 aprovada no
final daquela conferência. O Fidel que discursa na Eco 92 é um Fidel humanista,
que compreende que a racionalização dos estilos de vida e dos padrões de
consumo e a preservação da natureza são pré-condições necessárias para a
criação de uma nova ordem global justa. E é um Fidel terceiro-mundista como
sempre, que põe na conta dos mais ricos as principais responsabilidades pela
preservação do planeta e da espécie humana. Mais uma vez, vemos ali Fidel
dialogando com e servindo de exemplo para a esquerda do século XXI.
Em um dos seus mais célebres discursos,
Fidel afirmou que a História lhe absolveria. Do local e do momento onde
estamos, eu diria que a História percebe Fidel com as virtudes e contradições
do seu tempo. E que, somado tudo e percebido criticamente, o seu legado é de
uma importante lição para quem segue sonhando com um futuro de justiça e de
democracia para os povos. “Fidel foi um dos mais importantes políticos
contemporâneos e um visionário que acreditou na construção de uma sociedade
fraterna e justa, sem fome nem exploração, numa América Latina unida e forte”,
bem disse a presidenta Dilma. E como Dilma eu finalizo: hasta siempre, Fidel!
* Professor doutor em Ciências Sociais.
Vice-diretor do CCHLA/UFPB
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