terça-feira, 5 de dezembro de 2017

Esquerda e independentismo catalão

Esquerda e independentismo catalão

A demanda de separar-se do território espanhol baseada no fato de que a região entrega mais do que recebe é algo que a esquerda deveria rechaçar


30/11/2017 18:37
 

Está se produzindo um amargo debate na Espanha sobre o papel da esquerda no conflito gerado a partir da declaração de independência do governo catalão, e outras situações provocadas por essa iniciativa. Para alguns, a esquerda que está comprometida com o movimento independentista não percebe que o mesmo não forma parte dos valores progressistas nem em termos de ideologia e tampouco em termos de liderança. Outros acham que os setores de esquerda que não se posicionam estão desprezando uma oportunidade única de derrubar o restrito regime pós-franquista de 1978, se aliando ideologicamente à monarquia e aos setores mais reacionários da Espanha.

Na minha opinião, basta observar as consignas e lemas dos que se mobilizam pelo independentismo para chegar à conclusão de que a esquerda não se pode unir a eles. Ninguém pode negar que o pilar do discurso pró-independência é aquela famosa frase “a Espanha nos rouba”. Uma expressão egocêntrica, insolidária e classista que, embora desperte apoios dentro da Catalunha – e conseguiu muitos, não se pode negar – também semeia a discórdia no resto do país. Ainda que seja legítimo um movimento desejar a construção de sua independência e soberania a respeito a um Estado no qual até então estava integrado, não se pode demandar isso colocando um rótulo de parasita do seu trabalho e riqueza sobre o resto da cidadania, e logo pedir apoio, compreensão e solidariedade dos mesmos. Alguns independentistas, especialmente os de esquerda, argumentarão que não concordam nem utilizam esse slogan, e provavelmente isso é verdade, mas todos sabemos que essa é a ideia fundamental da campanha desde o começo, e que explica o crescimento do apoio a ela dentro da Catalunha – além, é claro, da repressão e do desprezo contra a região demonstrados pelo governo de Mariano Rajoy.

A demanda de separar-se do território espanhol baseada no fato de que a região entrega mais do que recebe é algo que a esquerda deveria rechaçar, uma vez que seu ideário busca promover a solidariedade e a redistribuição de riquezas. A consigna catalã é, basicamente, a mesma do milionário que leva o seu dinheiro a um paraíso fiscal. Fomentar o enfrentamento das comunidades autônomas com o discurso de qual comunidade põe mais ou menos dinheiro é também sabotar um princípio progressista básico de que as diferenças mais urgentes a serem combatidas são as que existem entre as classes sociais e não entre as regiões – por muito que seja desejável o equilíbrio em ambos os casos. Para a esquerda, quem rouba é o setor privado, que se aproveita da mais valia e do trabalho dos outros, desvia dinheiro do bolso das classes de baixo para o dos donos do capital. Não são as regiões autônomas, nem os povos os que roubam, e sim os donos do poder econômico.

Outra expressão explorada pelo independentismo é a ingênua ideia de que eles se afastam da Espanha porque não querem, como os demais, continuar com a monarquia, e com o rei.

Se trata de outro planteamento contrário aos valores progressistas. A esquerda nunca apresentou, em nenhum lugar do mundo, essa postura de que abandonar o barco e deixar os demais injustiçados para trás, sem seguridade social, sem direitos ou sem salário justo. A esquerda sempre foi a que encarou de peito aberto as lutas, as greves, as manifestações para pedir melhorias, inclusive nas condições mais adversas, inclusive para os trabalhadores de direita ou para os que não queriam participar, seja por ignorância ou falta de solidariedade. Essa é a grandeza da esquerda. Nunca reagiu com desprezo e soberba, dizendo “fiquem vocês aí com os seus problemas” aos trabalhadores ou cidadãos que não se somam às suas lutas. Entretanto, observo com tristeza essa reação em amplos setores do independentismo, e não me refiro somente aos militantes de base, mas também nas mensagens publicadas em redes sociais por líderes como Gabriel Rufián e Antonio Baños.

Outra acusação do independentismo contra o setor da esquerda que não o apoia é que este se alinha com a monarquia e os grupos mais retrógrados da Espanha. Efetivamente, existe uma esquerda que está se valendo neste tema do mesmo discurso da monarquia, do governo e da direita tradicional, que fala em fortalecer a todo custo a unidade e os atuais limites fronteiriços. Mas isso não quer dizer que seja para conseguir o mesmo modelo político e econômico. A esquerda pretende que a Espanha siga com as atuais fronteiras e com esses mesmos cidadãos que tem hoje, para que eles possam juntos expulsar o PP do poder, instaurar a república – em toda a Espanha, não somente em algumas regiões – e criar a partir daí um Estado social mais justo e igualitário. A direita quer a mesma Espanha dessas atuais fronteiras, mas para manter a monarquia, a oligarquia que está atualmente no poder e um regime neoliberal a serviço dos bancos e dos grupos econômicos, em detrimento do bem estar dos cidadãos.

Qualquer princípio progressista desejado pelos independentistas como uma benesse exclusiva para os catalães é algo que a esquerda espera (ou deveria esperar) que seja multiplicado por todo o país. Não obstante, esses princípios de esquerda que o governo independentista assegura que deseja implantar na Catalunha nunca foram colocados em prática pelos governos autonômicos.

Claro que devemos denunciar a violência e repressão do governo de Rajoy contra os catalães que desejam a independência, e também a violação das leis visando criminalizá-los. Mas também temos que ser conscientes de quais são os valores e princípios da esquerda, e que aqueles que não defendem essas ideias não nos terão incondicionalmente ao seu lado. Às vezes custa, mas é preciso refletir para ter certeza sobre quem são os nossos.

Fonte: Carta Maior

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