O Auditório
Carta Maior e o enredo do 'Lula lá'
Saul Leblon
Quando o espontâneo supera o organizado,
coisas extraordinárias podem acontecer na vida de uma nação.
O carnaval de 2017 deveria preocupar o
conservadorismo.
Mas também apertar o passo progressista
na construção do samba enredo para 2018.
Sim, uma festa popular não tem a
articulação, os objetivos, nem a organização de uma agenda política.
Não autoriza ilações descabidas.
Sendo popular, porém, e mais que nunca
massiva, como revelou a impressionante explosão de blocos nas ruas de São Paulo,
arrasta graus variados de percepção da realidade omitidos pelo noticiário
conservador.
E mais que isso: a contramão da ordem
por vezes revela energias subestimadas pelas próprias organizações contrárias à
ordem.
O que se viu nas ruas deste carnaval é o
corolário barulhento de uma rejeição silenciosa ao golpe de agosto de 2016, que
raramente ocupa as manchetes dos noticiosos.
Sondagens dobram a curva de uma
reprovação da ordem de 70%, mas o tratamento dispensado ao desastre-Temer é
benevolente, para dizer o mínimo.
A rua fantasiada escrachou essa
cumplicidade do jornalismo que pretende esconder um país inteiro dele mesmo.
O desabafo irreverente revelou a
saturação com a espiral de sobressaltos, desmonte social e esmagamento nacional
que há oito meses transforma o país em suco.
Com a mesma sutileza com que tratou o
primeiro comício massivo de 300 mil pessoas pelas “Diretas”, em São Paulo, como
parte das ‘comemorações pelo aniversário da cidade’, em 25 de janeiro de 1984,
a mídia tentou também diluir o refrão dos blocos em 2017.
‘Festa em São Paulo’, disse o
apresentador Marcos Hummel, do Jornal Nacional, em 1984... ‘Bem, vamos ficando
por aqui’, repetem sem graça repórteres, em 2017, enquanto o áudio é invadido
pelo ‘Fora, Temer!’ antagônico à
blindagem vendida como notícia.
Fatores objetivos explicam a ‘Quaresma’
antecipada do golpe.
Um deles resume todos os demais.
O país tem hoje o maior bloco de
desempregados da sua história.
Formado por 13 milhões de pessoas, o
corso atinge um contingente superior a 24 milhões de brasileiros e brasileiras
quando é engrossado pelo cordão dos que vivem de bico.
Agora compare.
Em 2003, quando Lula iniciou seu
primeiro governo, a taxa de desemprego deixada pelo PSDB beirava os 10% da
população economicamente ativa.
Em 2014, ao final do primeiro governo
Dilma, havia recuado a menos da metade, 4,5%.
A partir do cerco golpista, que levou à
desastrada rendição ao ‘ajuste Levy’, a maleita social retornou para chegar
agora a 12,6%.
Pior.
Na faixa entre 18 a 24 anos já se
transita em padrões gregos: desemprego de 25,9% no 4º trimestre de 2016, contra
19,4% em igual período de 2015.
O ciclo iniciado em 2003 criou vinte
milhões de vagas com carteira assinada em todo o país.
Tirou cerca de vinte milhões de
brasileiros da pobreza.
Deu mobilidade a outros trinta milhões
na pirâmide de renda.
Estendeu o reajuste pleno do salário
mínimo –e acima da inflação - para os 9,4 milhões de aposentados do campo.
Uma mudança social na vida de oitenta
milhões de pessoas, sem considerar seus dependentes, em apenas uma década, num
país de 200 milhões de habitantes.
A
inclusão foi tão expressiva, e o naufrágio atual tão abrupto, que mesmo sob o
bombardeio impiedoso do monopólio midiático, Lula irrompe como o bote
salva-vidas que parte com 30% dos votos para a viagem a 2018.
A direita sabe que em se tratando de um
adversário ferido, magoado e enxovalhado, sem espaço de resposta, esse pode ser
apenas o chão do seu potencial.
Portanto, o tiro ao alvo na cabeça
encomendada para figurar na parede dos abates ilustres, desde Getúlio, não vai
cessar.
Cada vez que a rua se enche de protestos
como neste carnaval, porém, os direitos políticos de Lula ganham uma sobrevida.
Assim será de agora em diante.
Dito de outro modo: a força e a
blindagem dessa candidatura vão refletir a capacidade de mobilização da
proposta progressista para reordenar o Brasil pisoteado pelo golpe.
Adicionar esperança ao grito espontâneo
de basta ecoado da folia carnavalesca é o desafio.
Lula tem uma história de conquistas e
realizações que o avalizam na memória popular como alguém capaz de conduzir
melhor um país que a elite prefere destruir a compartilhar.
'O trade-off
é mais liberalismo em troca de mais eficiência e transparência, é
preciso completar as reformas', dirão em 2018 os candidatos da ‘solução Espírito
Santo, empertigados em uma pilha de 190 cadáveres acumulados na greve da PM
capixaba.
Lula poderá perguntar-lhes docemente
–‘mostre-me onde isso deu certo?’
Na Espanha? Na Grécia? Em Portugal?
Nos EUA de Trump? Ou na Inglaterra, onde
a gororoba aplicada desde Thatcher (Blair incluso) conduziu a um sentimento de
destruição social que levou ao Brexit?
‘Menos Estado em troca de mais
distribuição’?
Trinta anos que não se faz outra coisa
no planeta a não ser desregular mercados urbi et orbi.
O saldo não entregou o prometido.
Faltam empregos e o esgarçamento social
tornou-se agudo para ficar apenas no que acontece entre as nações ricas.
O que falta para lubrificar a engrenagem
emperrada?
Ademais da regulação do sistema
financeiro, falta o que o Brasil tinha, mas a boa ‘ciência econômica’ aqui -
com o incentivo do ínclitojornalismo especializado – achou indispensável
liquidar, em vez de repactuar.
Mercado de massa em expansão, horizonte
firme de demanda, investimento público, distribuição de oportunidades, de bens
e de infraestrutura.
A
desregulação do mercado de trabalho e a destruição do pleno emprego, ao
contrário, avançam e são festejadas.
No plano mundial foram justamente elas
que pendoaram as sementes dessa que é a mais longa, frágil e incerta
convalescença de todas as crises capitalistas desde 1929.
Mas não só no mundo rico.
O massacre da desproteção ao trabalho,
na fórmula consagrada de empregos desqualificados associados à
desindustrialização precoce, reveste também o fracasso pedagógico de um México,
por exemplo.
O bom aluno da lição de casa reformista,
evocada aqui como a redenção da lavoura, mantém 46,2% de sua população vivendo
na pobreza (El País).
Repita-se: 46,2%!
Assim: o salário mínimo local é o mais
baixo da América Latina, um dos mais baixos do Ocidente e insuficiente para
alimentar uma única pessoa por 30 dias.
A perspectiva dos que desejam fugir dele
é trombar com o muro que o ‘parceiro’ norte-americano pretende erguer entre os
dois países.
Mais: o México enterrou sua indústria;
vendeu seu petróleo in bruto; não o vinculou a um impulso industrializante
associado a exigências de conteúdo nacional na cadeia da exploração.
A nação de Cárdenas e Zapata é hoje um
barracão de montagem de importados, com empregos de densidade salarial
equivalente a sua apropriação tecnológica.
O crédito seria o oxigênio desse
capitalismo asfixiado pela própria gula.
Mas como qualquer lenitivo, ele só
mascara a doença.
Crédito em volume cada vez maior a
tomadores cada vez mais descapacitados para pagá-lo redundou na fagulha das
subprimes, que acendeu o pavio da explosão mundial em 2008.
Sobrou o deserto do real.
Um imenso areal de mão de obra
subempregada, trabalhadores em tempo parcial, dezenas de milhões de famílias
endividadas, outros tantos milhões de lares sem condições sequer de prover o
próprio sustento...
Brexit, Trump, xenofobia, protecionismo etc.ensejam
a dúvida: o que é pior, um capitalismo entregue à própria sorte, ou salvo agora
pelas manifestações mórbidas de sua podridão?
Quando o carnaval de rua grita ‘Fora, Temer!’ de norte a sul do país, é
disso que se está falando na intuição irreverente de seus foliões.
Como ir da troça à disposição de
sustentar outro enredo de futuro?
Erguer essa linha de passagem é o
requisito para dotar os direitos políticos de Lula de uma resiliência capaz de
garantir seu nome na cédula de 2018.
Tarefa difícil?
Muito.
Uma das mais difíceis de todos os
carnavais.
O golpe agiu para queimar as caravelas
dessa travessia.
Subtrair qualquer instância de comando
da sociedade sobre o seu destino e o destino do seu desenvolvimento é o norte
de sua bússola.
A ponte
para o futuro deles implica interditar qualquer projeto organizado de
futuro para a nação.
O país anterior ao golpe de agosto de
2016 foi degolado, picado e salgado.
Até então havia razoável convergência em
relação aos motores do próximo período.
O salto tecnológico acoplado ao impulso
industrializante do pré-sal era um deles.
Os grandes projetos de infraestrutura
pesada e urbana, outro.
A transição sustentável do
desenvolvimento nas frentes da energia, da agricultura, do manejo florestal
pavimentaria outro estirão de longo curso.
A destruição das ferramentas que
estruturavam esse espaço de consenso foi a grande contribuição de Moro, Serra,
Cunha, Temer, Jucá et caterva,
efusivamente aplaudidos na mídia pelo conjunto da obra.
Poupar a elite do imposto inerente a uma
repactuação democrática e sustentável do desenvolvimento estava na raiz desse
mutirão.
Para entregar o serviço, a escória
colocou o parlamento em assembleia permanente contra o povo.
O cerco da devastação exige desassombro
para negociar o futuro com quem ainda quer conversar sobre soluções coletivas.
Quem não quer só o fará pressionado pelo
bloco da rua.
O ‘consenso golpista’ vendido pelo
martelete midiático não deve impressionar.
A
modelagem golpista choca um Brasil radicalmente diverso daquele que foi
reiterado pelas urnas por quatro vezes seguidas desde 2003.
Arrocho fiscal, revogação de direitos,
aviltamento salarial, desemprego em massa, recuo do investimento público e
entrega de patrimônio estratégico poderão redundar no enriquecimento de alguns.
Mas jamais conduzirão a uma sociedade
convergente, próspera e fraterna como as urnas pediram em 2002, 2006, 2010 e
2014.
Em 2018 será preciso dizer a elas,
explicitamente, que não, não será o ‘livre mercado’ do conservadorismo que
produzirá aqui uma sociedade virtuosa.
Tampouco a panaceia da produtividade.
Alavanca essencial do desenvolvimento, a produtividade nas fábricas nazistas
era elevada, sem redundar em justiça social.
Política é economia concentrada.
Quem produz o desenvolvimento
convergente é a democracia encarnada em valores, conquistas, direitos,
instituições, cultura, pluralidade midiática, consciência e organização social.
A ilusão economicista de que isso tudo
poderia derivar das gôndolas para a correlação de forças foi o erro de inversão
gigantesco cometido pelo ciclo progressista.
Não basta admiti-lo.
É necessário, entre outras coisas,
repensar coletivamente velhos canais de participação democrática e abrir outros
novos.
Carta Maior considera sua obrigação
histórica contribuir para o enredo que pode colocar na rua um bloco
progressista ainda mais forte em 2018
Para isso está adaptando a sua forma de
atuação.
Inaugura em breve um auditório para 80
pessoas, destinado a promover debates semanais, diários –se preciso, para
impulsionar a reflexão engajada que só se completa na ação.
A programação dos debates nesse novo
espaço será informada em breve em nossa página.
Não será um salão de chá diletante, mas
um acampamento de ideias para a ocupação da agenda política brasileira.
A decifração do passo seguinte do país
não pode prescindir desses círculos de reflexão engajada e, sobretudo, de suas
consequências organizativas e programáticas para 2018.
Repita-se: isso equivale hoje a semear
sobre a terra arrasada.
Outros já o fizeram, no entanto, em
condições tão adversas quanto, ou mais.
Roosevelt enfrentou uma encruzilhada
paralisante nos EUA dos anos 30.
Parecia não sobrar um centímetro de chão
firme para reerguer a nação, após o colapso de 1929.
Para arrancar a sociedade da depressão
foi preciso capacitá-la a se reerguer pelos próprios cabelos, como um barão de
Münchhausen coletivo.
De certa forma, Roosevelt inventou um
novo país para poder agir sobre os escombros do antigo, desordenado pela
voragem especulativa.
O presidente que seria reeleito para
mais três mandatos, disse a que veio com desassombro: alterou drasticamente o
arcabouço institucional da economia, com incentivo ao consumo, disparou obras
de infraestrutura e impôs corajosa regulação bancária, submetendo o capital
ocioso aos desígnios da produção e do interesse coletivo.
Faria o mesmo com os pilares da
democracia.
O incentivo à sindicalização em massa
deu-lhe inimigos à direita, mas também um protagonista de peso como aliado. O
ativismo radiofônico avant lalettre
driblou o cerco da mídia para falar direto às famílias assalariadas e rurais.
Mutatis
mutandis é um pouco essa a
envergadura do que se exige de um projeto progressista, capaz de empolgar as
ruas de 2018 e, mais ainda, mantê-las assim no dayafter de uma possível vitória.
Com um complicador adicional em relação
aos anos 30.
Apenas religar o motor do crescimento
agora já não atende mais à demanda por um ciclo sustentável de prosperidade e
democracia.
A régua do debate subiu um degrau
irreversível com o avanço da emergência climática.
A saturação hipercapitalista e seu vetor
financeiro tornaram-se incompatíveis com a sobrevivência do desenvolvimento, da
democracia e da natureza.
Repactuar o futuro de uma nação numa
encruzilhada desse calibre requer a força e o consentimento de um projeto
abraçado por umimenso corso de votos e de organização popular
O Auditório Carta Maior se propõe,
modestamente, a ser um dos barracões de construção dessa cenografia, capaz de
levar Lula à vitória em 2018.
www.cartamaior.com.br 03/03/2017
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