Saul Leblon
A população do Espírito Santo, sobretudo
a da capital e região metropolitana, foi arrastada a uma viagem no tempo que
antecipou, em vinte anos, o país da receita de arrocho implantada pelo golpe de
2016.
Por dias e noites prefigura-se ali o
espetáculo truculento de uma sociedade submetida à crua expressão de seus
interesses contrapostos, sob a égide de um Estado mínimo.
O acelerador da história, neste caso,
foi o eclipse de um dos vigamentos centrais do poder estatal na sociedade
moderna: o monopólio da violência.
Ele foi abduzido em terras capixabas por
uma greve policial que fez recuar, com assustadora rapidez, o império da lei.
Em seu lugar emergiu um filme
fantasmagórico.
Ruas desertas, paralisia do sistema
coletivo de transporte, comércio de portas cerradas e escolas vazias.
Nesse ambiente zumbi o crime é o senhor
ubíquo da vida e da morte da sociedade. Seu carcereiro, seu juiz e seu
carrasco.
O saldo da, repita-se, velocidade com que
a ordem supostamente baseada em valores compartilhados se liquefez, ombreia-se
ao de regiões submetidas aos padecimentos das guerras convencionais.
Mais de uma centena de assassinatos
–quase um por hora, cerca de duzentos roubos de veículos por dia, agressões,
saques, desabastecimento.
O conjunto não contabiliza a octanagem
de terror e insegurança experimentados pelos passageiros dessa aventura: os
dois milhões de habitantes da Grande Vitória.
Sempre se poderá alegar em defesa do
conservadorismo que serviços essenciais, como é o caso da segurança pública,
não se incluem no credo da miniaturização do Estado por ele apregoada.
Na prática a teoria é outra.
E nisso também a aceleração temporal
capixaba é fértil em advertências ao Brasil.
A barbárie que lateja no ventre dos
ajustes fiscais draconianos, a exemplo daquilo que o golpe prescreve para os
próximos vinte anos no país, evidenciou a sua cegueira indivisa no Espírito
Santo.
O economista Marcos Lisboa, um dos
clínicos mais respeitados das terapias neoliberais, ex-integrante da equipe do
ex-ministro Antônio Palocci, acusa de ‘chantageadores’ policiais grevistas cujo
salário base - de R$ 2.643- está há 7 anos sem aumento real. E há 4 anos sem
reajuste da inflação.
A informação é da Associação dos Oficiais
Militares do Espírito Santo.
A lista de exigências dos ‘chantagistas’
de Marcos Lisboa inclui itens que desconcertam pela sua exclusão na rotina de
quem cuida da segurança da sociedade.
Auxílio alimentação, por exemplo. Mas
também adicional noturno e plano de saúde, ademais de adornos ornamentais, como
colete à prova de bala e manutenção das viaturas.
A reação raivosa de Marcos Lisboa,
infelizmente, não é solitária.
Encampa essa reação a constelação dos
ditos economistas de mercado, dos quais se cercou o governo do Espírito Santo,
recebendo em troca elogios regulares de suas estrelas na mídia.
Armínio Fraga, Samuel Pessoa, Mansueto
Almeida, entre outros, chegam a arriscar o nome de Paulo Hartung, ‘o governante
bom de ajuste’, como um potencial concorrente à presidência da República pelo
partido do ‘mercado’, em 2018.
De fato, o peemedebista Hartung, em seu
terceiro mandato como governador, notabiliza-se pela determinação em cumprir
aquilo que o neoliberalismo colegial denomina de ‘lição de casa’.
Aluno aplicado, o governador limou o
orçamento de seu antecessor antes mesmo de tomar posse, em 2015, por considerá-lo
superestimado na coluna das receitas.
À frente da lipoaspiração fiscal estava
um titã da constelação ortodoxa: a economista Ana Paula Vescovi, cuja
habilidade no manejo da tesoura rendeu-lhe um prêmio, após o golpe de agosto de
2016.
Apadrinhada pela turma de Marcos Lisboa,
Manuseto, Armínoetc, ela foi alçada ao cargo estratégico de Secretária do
Tesouro Nacional, em Brasília, levando na bolsa as lâminas necessárias para
replicar na esfera nacional um dos mais duros processos de ajustes fiscais já
feitos num Estado brasileiro.
Vescovi faz parte da ordem festejada
pelo mercado por ‘entregar o serviço’ com fé, sem misericórdia.
Comprimir o Estado no que for preciso
para honrar a dívida com os credores é o sacramento dessa operária do arrocho.
Sua eficiência virou um ‘case’ festejado
na boca e nos artigos dos grandes malabaristas que defendem cortar as pernas do
país para fazê-lo andar mais, com menos.
No seu terceiro mandato, Hartung herdou
um déficit de R$ 1,4 bilhão em 2014.
A tesoura de Vescovi trabalhou com
afinco.
Em 2015 o governador do PMDBpode
anunciar um superávit de R$ 176 milhões: basicamente um cavalo de pau nos
gastos, sem ganhos de receita.
Uma consultoria privada –a dos
ortodoxos- foi acoplada à máquina pública.
Meta: ‘reduzir desperdícios’ em áreas
triviais como Educação, Saúde, Segurança etc.
Em 2016, outro superávit.
Pequeno, informa-se, algo sem jeito,
nestes dias em que a polícia local reivindica colete-a-prova de bala. Mas
ilustrativo, na medida em que as receitas definharam com a recessão dos últimos
dois anos e escavaram o fundo do poço em uma economia já detonada por suas
peculiaridades.
O desastre da Samarco, em Mariana (MG),
paralisou quatro pelotizadoras da empresa no Espírito Santo, sobrepondo-se aos
efeitos da queda nos preços do petróleo, cuja exploração na costa capixaba tem
peso relevante na receita, a exemplo do que ocorre no Rio de Janeiro.
Os dois estados, por sinal - vale o
parêntesis- estão destroçados financeiramente.
Mas não por acaso recebem tratamento
distinto na mídia.
A crise carioca é demonizada pelo jogral
dos economistas de mercado.
A superlativa desenvoltura com que o
ex-governador Sergio Cabral ergueu seu pecúlio particular ancorado em obras
públicas lubrifica o martelete do oportunismo ortodoxo.
O Rio de Janeiro reportado pela emissão
conservadora é um caso terminal de ‘má gestão e gastança’.
Ao diagnóstico emenda-se invariavelmente
um vaticínio.
O Brasil seguirá o mesmo caminho se o ’lulopopulismo’
não for erradicado, ou seja, se as medidas antissociais e antinacionais
preconizadas pelo golpe não forem ministradas.
A greve de policiais no Espírito Santo é
uma pedra no caminho dessa narrativa.
Afinal, como um ‘case’ fiscal exemplar,
que alçou sua condutora ao comando do Tesouro Nacional, pode redundar em uma
crise igual ou pior que a do Rio de Janeiro perdulário?
Assim:
O
sucesso do arrocho fiscal capixaba foi obtido basicamente com um corte drástico
dos investimentos públicos; a previsão para este ano reserva apenas R$ 200
milhões a esse item;
I)
A economia de
cerca de R$ 1,6 bilhão obtida em 2015 correspondeu em 80% a tesouradas nessa
rubrica, que explicam a lista desconcertante de reivindicações dos
‘chantagistas’ de Marcos Lisboa;
II)
A proeza exigiu a
suspensão do reajuste dos servidores públicos – tampouco previsto no orçamento
de 2016, medidafestejada como evidência de compromisso corajoso com a meta
fiscal pelo jogral pró-cíclico.
Esse que não hesita em lançar boias de
chumbo a afogados.
Na verdade, a reversão brusca nas rendas
do petróleo tornada explosiva com a destruição da Petrobras, a paralisação de
suas obras, o desmanche de estaleiros e da cadeia de fornecedores -graças à
visão de mundo do juiz de Curitiba - exigiria uma ação federal preventiva para
mitigar perdas e danos nos dois polos mais atingidos pela borrasca, Rio de Janeiro
e Espírito Santo.
Quem acredita, porém, que a quebradeira
pune a ‘imundícia das intervenções’ indevidas na formação e distribuição da
riqueza das nações, prefere a ‘purga’.
Era o que diziam também os antecessores
de Franklin Roosevelt, em plena quebradeira de 1929 nos EUA.
Como hoje no Brasil, números azedos
comandavam a economia sem que se erguesse uma força com legitimidade e projeto
capaz de comandá-los.
O monólogo da ‘purga inevitável em
tempos difíceis’ ia impondo sua ordem unida na frente da produção, do
financiamento, do emprego e da política.
A percepção de que as rédeas escapavam
às mãos que deveriam controlá-las, como acontece aqui, fornecia a ração diária
do ceticismo que engrossa a cintura dos grandes colapsos nacionais.
O salve-se quem puder de cada unidade
produtiva fornecia o combustível à imolação coletiva.
Em tempo: estamos falando de 1929 no
hemisfério Norte.
O liberal Herbert Hoover, presidente
norte-americano então, assistia a tudo impassível.
Ou melhor, pró-cíclico.
Sua fé na autorregulação dos mercados
embalava a sociedade em uma nuvem de colapso social e produtivo sem precedente.
Na semana em que Roosevelt assumiu a
presidência, o país tinha proporcionalmente o maior contingente de
desempregados do mundo.
Somado às respectivas famílias equivalia
a uma população maior que a da Inglaterra então.
A perda de confiança no futuro
funcionava como uma empresa demolidora; milhões de marretas anônimas
trabalhavam dia e noite para desmontar o que restava do alicerce social e
econômico.
Eleito no primeiro de quatro mandatos
sucessivos em 1933, Roosevelt não esperou afundar o que restava de casco fora
d’água.
Adotou um programa calcado em
contundente intervenção do Estado na economia, o New Deal.
Um vigoroso plano de obras públicas
destacava-se no seu corpo.
Mas não era a espinha dorsal.
Roosevelt domou o próprio medo e regulou
duramente o sistema financeiro, o verdadeiro vórtice da crise.
A especulação bancária com dinheiro dos
correntistas foi coibida, o dólar foi desvalorizado para favorecer as
exportações.
Criou-se, ademais, um sistema de
Previdência Social para proteger os trabalhadores, cuja sindicalização em massa
foi incentivada, o que rendeu ao presidente democrata a acusação de comunista.
O ‘comunista’ salvava o capitalismo dele
mesmo.
Roosevelt semeou assim protagonistas
para as mesas de repactuação de preços, salários e metas de produção entre
empresas, sindicatos e governo, que forneceriam a alavanca para reverter o
desalento em esperança - experiência inspiradora para um Brasil incapaz de
enxergar a porta do futuro.
Roosevelt o fez –é bom não esquecer-
graças a uma correlação de força decidida na rua, que lhe deu o poder de
indução nacional.
Assim ancorado, ganhou margem de manobra
para taxar duramente o lucro financeiro e os dividendos e induzir o
investimento produtivo.
Com a mesma legitimidade, reduziu horas
de trabalho para gerar novos turnos nas fábricas; renegociou dívidas das
empresas e renegociou o crédito, condicionando-o a metas de produção e emprego.
A prefiguração do que significa viver em
uma sociedade regida pela espiral oposta -sem Estado, ou com um Estado
mínimo-encurrala nesse momento a população capixaba na fronteira da anomia
social.
A sublevação do seu braço armado
transfigurou a panaceia do ‘ajuste’ em uma guerra de todos contra todos.
Não é um ponto fora da curva.
É a curva da insanidade conservadora.
Essa que se outorgou a missão, não
escrutinada, de dar um cavalo de pau na democracia e na economia brasileiras,
jogando por terra amplos segmentos da sociedade, largas esferas da produção e a
vontade soberana de mais de 54 milhões de votos.
Pode acontecer de novo em outros elos
vulneráveis de uma federação trincada por dívidas, déficits, receitas
declinantes, colapso nos serviços, demandas sociais agigantadas pelo
desemprego.
O desespero popular silencioso em outros
grandes centros não significa que o risco Espírito Santo foi estancado.
A serpente continua a espalhar seus
ovos.
Numa das cenas do filme “Ensaio sobre a
Cegueira”, adaptação de Fernando Meirelles para o romance de Saramago, o
personagem cego pergunta à esposa cuja visão subsiste na solidão de um mundo
que perdeu a capacidade de se enxergar e se autogerir:
‘Há sinais de governo?’
A resposta é dada pelo angustiante
passeio da câmera nas ruas de uma metrópole que lembra a noite sobressaltada de
Vitória.
O que a lente documenta são bandos
esfarrapados e famintos vagando sem destino. Modalidades previsíveis da
barbárie preenchem um hiato em que o Estado desmoronou e os valores da
convivência humana se eclipsaram.
A autorregulação dos mercados não
preenche o vazio, amplifica-o.
Quem assistir ao filme nesses dias de
convulsão doméstica dificilmente resistirá à analogia com um horizonte de
desordem nacional que se estende até onde a blindagem do jornalismo conservador
permite enxergar.
Ora ela explode em números de
desemprego; ora em ações de um juiz que se comporta como uma entidade rapinosa;
ora é a ingovernável visita da tragédia; ora decisões intempestivas de um
parlamento que se comporta como a câmara de gás do futuro nacional, como se não
houvesse amanhã.
Mais inquietante, no entanto, é a
invisibilidade de alternativas que ofereçam à sociedade uma nova visão da
economia e do seu desenvolvimento.
Para um pedaço da esquerda que já jogou
a toalha, não há forças de redenção para resistir ao novo normal golpista.
Não sabem seus porta-vozes, mas o
conformismo que engrossa a fila do matadouro azeita os dentes da engrenagem com
a qual pretendem negociar.
A cegueira hoje é a jaula ideológica
erguida ao longo de décadas de recuos e adaptação da democracia às imposições
dos mercados e de seus dogmas.
Uma pergunta povoa o imaginário brasileiro
com um misto de ansiedade progressista e apreensão conservadora.
Para onde vai Lula diante dessa
encruzilhada, depois que jurou no caixão de dona Marisa continuar a luta pelo
Brasil que inspirou suas vidas?
Lula não é um bolchevique.
Mas não se cansa de repetir que é fruto
das lutas do povo brasileiro.
Seu norte é ‘nunca se esquecer de onde
veio’ –dizia-lhe a voz assertiva da ‘galega’, que vai ecoar para sempre na sua
cabeça.
Lá dentro ele sabe que não há o que
negociar na economia sem que antes a liberdade de sufrágio recoloque na mesa a
vontade majoritária da população brasileira.
Os 134 mortos do Espírito Santo não são
mera decorrência dos ‘chantagistas’.
Eles são a ponta de um iceberg feito de
12 milhões de desempregados, de R$ 50 bilhões em obras públicas paralisadas, da
entrega do pré-sal, da destruição da engenharia nacional, do esquartejamento da
Petrobras, da ameaça aos assalariados, da penalização dos aposentados e
pensionistas pobres, da escória erigida em autoridade e da rapina embalada em
virtude.
Mudar isso implica reverter a correlação
de forças. Aquela que permitiu a Roosevelt ser o que foi e impediu Obama de
reeditá-lo.
A vontade majoritária da população
brasileira precisa saber que o espírito santo de hoje prefigura o inferno do Brasil
no passo seguinte de sua história.
Isso na voz rouca de Lula estala mais
forte que pancada.
A ver.
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