Roberto Requião*
Se a
capacidade dos vende-pátria, vende-terras, vende-petróleo, vende-água parece
inexaurível, mais cresce a responsabilidade dos nacionalistas.
A saída
do Reino Unido da União Europeia; a eleição de Trump, nos Estados Unidos; a
liderança de François Fillon na disputa para a presidência da França; a recente
pesquisa indicando o avanço do Partido Social Democrata da Alemanha, na
hipótese de rompimento da aliança que hoje mantém com a chancelerAngela Merkel;
a derrota do primeiro ministro da Itália, MateoRenzi, em um plebiscito que mais
rejeitou sua política econômica que as reformas administravas que propunha; a
crise espanhola que não ata nem desata,
impedindo há mais de ano que o país tenha um governo com clara maioria no Parlamento; a lenta e dolorosa agonia da Grécia, são
recorrências que têm uma mesma origem: a reação à ditadura do capital
financeiro global, cuja prevalência sobre os interesses nacionais, sobre o
trabalho, a produção , a ventura de vida, o bem-estar e a felicidade dos homens
desperta reações Planeta Terra afora.
Evidentemente,
como todo acontecimento político e social, não há rigorosa simetria em tais
reações, mas o denominador que os impulsiona é o mesmo: a saturação do
neoliberalismo, especialmente da financeirização da vida das nações e da
humanidade.
“Nenhum
país vai se desenvolver se não defender sua indústria e seus trabalhadores”.
Esta
frase é uma citação.
Qualquer
um das senhoras e dos senhores senadores, inclusive eu, desconhecendo sua
autoria, a colocaria à conta de um líder de esquerda, de um nacionalista de
algum país subdesenvolvido. Mas a frase é de Donald Trump, presidente
norte-americano que se elegeu não por causa de delírios como o muro na
fronteira com o México ou a política anti-imigração. E sim porque prometeu
fazer com que os interesses do povo norte-americano, especialmente de seus
trabalhadores, iriam se impor à globalização.
Certamente
não é meu herói, como não são os senhores François Fillon, Martin Schulz ou a
senhora Thereza May.
Da mesma
forma, não inscreveria entre as minhas inspirações a senhora Christine Lagarde,
diretora-gerente do FMI ou o senhor Jim Yong Kim, presidente do Banco Mundial.
Mas tanto uma como outro, frequentemente, tem espicaçado as políticas
econômico-financeiras de países como o nosso que, triste e mediocramente têm
insistido em seguir a trilha do fracassado modelo liberal.
Ainda
agora, o presidente do Banco Mundial declarou:
“É a primeira vez que vejo um governo destruir o que
está dando certo. Nós do Banco Mundial, o G8 e a ONU recomendamos os programas
sociais brasileiros para dezenas de países, tendo em vista os milhões de pobres
brasileiros que saíram da extrema pobreza nos governos anteriores a esse.
Agora, a fome vai aumentar consideravelmente em
2017. Cortar programas sociais que
custam tão pouco ao governo, como o Bolsa Família, é uma coisa que não tem
explicação”.
Tem
explicação sim, senhor Jim Yong Kim. A mesma explicação do porquê o Brasil foi
o derradeiro país a libertar os negros da escravidão. A mesma explicação do
porquê, comparativamente com Estados Unidos da América, as nossas elites
políticas, econômicas e sociais optaram pelo escravismo, pela dependência, pela
economia agroexportadora, pelo extrativismo, pelo rentismo, pelo arrocho
salarial, pela segregação e exclusão social, pelo golpismo.
Nesses
tempos de internet, onde é livre falar, é só falar, alguns ociosos, com parcos
neurônios, nenhuma leitura e a típica ousadia dos idiotas, costumam despejar
toneladas de preconceitos étnicos, morais e religiosos para explicar o
descompasso entre o desenvolvimento brasileiro e o desenvolvimento
norte-americano.
Ignoram
eles que, na segunda metade do século XIX, o caminho escolhido pelos Estados
Unidos para se desenvolver chamou a atenção dos maiores teóricos da economia
política da época, à esquerda, à direita, ao centro. Vou citar três dos mais
expressivos teóricos que se ocuparam a estudar os Estados Unidos.
Os
fundadores do comunismo científico, Marx e Engels, e Friedrich List, um homem
de centro, criador do chamado “Sistema Nacional de Política Econômica”. List
vai se tornar o formulador de política econômica mais traduzido até os meados
do século XX, e exerce forte influência sobre o pensamento econômico e político
até os nossos dias. Citaria entre seus discípulos John Maynard Keynes, Raul
Prebisch e o nosso Celso Furtado.
Marx e
Engels falam com admiração que os norte-americanos escolheram a via expressa
para o desenvolvimento, que optaram por fabricar fabricantes, criando mecanismos
para incentivar a produção industrial local, financiando-a e protegendo-a da
concorrência internacional.
List,
recolhe no exemplo dos Estados Unidos os elementos essenciais para formular seu
próprio sistema de política econômica.
O que
encantou teóricos comunistas e liberais no modelo norte-americano?
Três iniciativas
os encantaram:
1ª Fixação de
tarifas alfandegárias elevadas e seletivas, para proteger a indústria local;
além da concessão de subsídios para favorecer o crescimento do setor.
2ª Investimentos
públicos em infraestrutura: ferrovias, rodovias, hidrovias, portos, energia e
saneamento.
3ª Criação de um
banco nacional e de um sistema estatal de financiamento da produção.
Foi assim
que os Estados Unidos tomaram a via expressa para o desenvolvimento.
Vejam,
por quase um século, de 1860 à década de 1940, os Estados Unidos mantiveram a
política de tarifas alfandegárias elevadas e seletivas, para proteger a sua
produção industrial. Ao mesmo tempo em que não abriu mão da política de subsídios.
As bases
para essa política de desenvolvimento foram lançadas por Alexander Hamilton, um
dos pais fundadores dos Estados Unidos, logo depois da independência do país,
no século 18.
Até hoje
eu vejo pessoas de esquerda torcer o nariz por causa de algumas observações
nada favoráveis de Marx sobre a parte inferior do continente americano,
enquanto manifestam admiração pela política de desenvolvimento industrial da
parte superior.
Parece
que o velho Marx tem razão, não é? Afinal, desde sempre, as elites brasileiras
-e latino-americanas por extensão- optaram claramente pela subordinação do
desenvolvimento nacional aos interesses do capitalismo internacional.
Quando os
Estados Unidos romperam com a metrópole londrina, voltam-se imediatamente a
“fabricar os seus fabricantes”, como observou Marx.
Quando o
Brasil livrou-se de Portugal, fez aquilo que os Estados Unidos recusaram-se a
fazer: torna-se subordinado ao desenvolvimento industrial britânico. Portugal
proibia-nosde fabricar até mesmo sabão, velas e botões. Depois do Grito do
Ipiranga, o Brasil continuou sem fabricar sabão, vela ou botões.
Os Delmiro Gouveia, os Irineu Evangelista de
Souza foram avis rara no pombal da
Casa Grande e, como exceções, não fizeram Verão.
Da mesma
forma que, lá atrás, as nossas elites escravocratas e coloniais renunciaram a adotar
o “Sistema Americano de Economia Política”, os atuais governantes, com o apoio
do sistema financeiro, de políticos e partidos conservadores, globalistas, para
não dizer colonizados, da mídia e dos economistas e comentaristas da Globo, da
Globonews, da CBN, expressões máximas do influentíssimo analfabetismo pátrio,
persistem hoje em fazer do Brasil o último refúgio de um sistema que fracassou
no mundo todo e que passa a ser repudiado até mesmo nos centros econômicos mais
avançados.
Na
contramão da história no alvorecer da nacionalidade, na contramão da história
em uma das mais graves crises do Planeta.
Enquanto
Donald Trump, Thereza May, François Fillon, Justin Trudeau, Martin Schulz,
Pablo Iglesias aumentam o tom contra a globalização financeira e defendem a
adoção de políticas protecionistas, para salvaguardar os seus povos da
voracidade de Mamon, os gênios pátrios anunciam toda sorte de franquias, de
aberturas, de concessões, de submissões para atrair os especuladores
internacionais e aqueles hipotéticos investidores que apreciam uma pechincha.
Vamos ao
roteiro da transformação do Brasil em um estado bárbaro, dependente, produtor
intensivo de produtos agrícolas voltados à exportação, fornecedor de matérias
primas e commodities, com a oferta em larga escala de mão-de-obra barata e
desprotegida de direitos.
Eis o
roteiro em execução:
·
Destruição do
ainda precário Estado Social brasileiro, que estávamos construindo desde a
Revolução de 30 e que deu bons avanços entre 2003 e 2015.
·
Fim dos direitos
trabalhistas, com a prevalência do negociado sobre o legislado e com a
liberação irrestrita da terceirização do trabalho.
·
Reforma da
Previdência, que tem como senha a falsa alegação de déficit no setor, mas cujos
objetivos são o aumento do tempo de serviço dos trabalhadores e a privatização
da área.
·
Venda, a preços
irrisórios, como os próprios compradores festejaram, de reservas de petróleo da
camada pré-sal.
·
Fim da política do
conteúdo local; contratação no exterior de plataformas para a Petrobras;
preterição das grandes empresas nacionais de engenharia, sob a alegação de que
se envolveram em corrupção ao mesmo tempo em que se contratam empresas de
engenharia estrangeiras, internacionalmente denunciadas por corrupção.
·
Aperto do
torniquete da dívida em estados e municípios, exigindo como contrapartida a
privatização de empresas de energia elétrica, de água e de saneamento, o
arrocho salarial e previdenciário, cancelamento de programas sociais.
·
Aumento do teto
de financiamento do programa Minha Casa, Minha Vida, para privilegiar a classe
média alta.
·
Liberação do
saque do FGTS, para produzir um ilusório, fugaz e publicitário aquecimento da
economia, sacrificando e pulverizando a poupança dos trabalhadores.
A lista
das tais “reformas”, todas elas para atrair investimentos estrangeiros ou
estimular que os empresários brasileiros troquem o rentismo pela produção,
estende-se ao infinito.
Fez-se e
faz-se terra arrasada de toda e qualquer proteção ao trabalho, aos
desamparados, aos mais pobres, aos idosos e ao empresariado nacional.
Parafraseando
o presidente do Banco Mundial: nunca se destruiu tanto, em tão pouco tempo.
E a
cereja nesse bolo neoliberal vem agora, com a permissão da venda de terras aos
estrangeiros. O ministro Henrique Meirelles disse que quer ver aprovada a
novidade em 30 dias, porque, segundo ele, a venda de terras atrairá grandes
investimentos internacionais.
Oh,
Senhor Deus! Misericórdia, Senhor!
Sua
excelência, o senhor ministro da Fazenda, depois de quase um ano de idas e
vinda erráticas, improdutivas, espera agora uma enxurrada de dólares, com a
venda de terras?
Que será
depois? A água? O aquífero Guarani, como
insinuou o agora blindado ministro Moreira Franco? Na sequência o ar? A casa da sogra? Quê mais?
Aliás, a
reação do ministro da Agricultura, Blairo Maggi, à proposta de seu colega
Meirelles constitui-se no melhor argumento contra a venda de terras.
Disse
Blairo: “Tudo bem, desde que não se vendam terras onde plantamos soja e milho,
do contrário, os estrangeiros vão manipular o plantio, conforme a cotação
internacional dos produtos”.
Desculpe-me,
ministro Blairo, que terras, então, os estrangeiros vão comprar? Para plantar o
quê? Hortaliças? E como o governo vai impedir que os estrangeiros comprem
terras onde se produzem soja e milho? Quer dizer que nós vamos vender terras
para eles e determinar o que eles podem ou não plantar? Sendo assim, que interesse eles teriam em
comprar terras aqui?
Por fim,
vou voltar há 132 anos, ao ano de 1885, para constatar que o tempo passa, o
tempo voa e as nossas elites governantes, as nossas classes conservadoras, como
se dizia antigamente, continuam mediocremente as mesmas.
No dia 28
de setembro de 1885, foi aprovada a Lei da Gargalhada, também conhecida como
lei Saraiva-Cotegipe ou Lei dos Sexagenários.
No fervor
da luta contra a escravatura dos negros, os conservadores aceitaram aprovar uma
lei que libertasse escravas e escravas com mais de 60 anos. Na verdade, só
ficavam imediatamente livres as negras e os negros com mais de 65 anos. Os com
menos, deveriam indenizar os seus donos, trabalhando mais três anos, sob o
chicote dos feitores.
Essa
incrível lei ficou conhecida como a Lei da Gargalhada, pois foi assim que a
receberam os abolicionistas e os brasileiros com um mínimo de senso de
humanidade. E senso do ridículo!
Não por
causa da obrigação de o escravo com 60 anos ter que trabalhar mais três, para
indenizar o seu dono. Não.
A amarga
gargalhada foi porque a vida média dos escravos brasileiros era de 30 anos!
Trinta anos! Logo, praticamente não havia vivo quem a lei beneficiasse!
Como são
insaciáveis em sua crueldade, as classes dominantes! Pois não é que 132 anos
depois, produzem uma contrafação, um pastiche da Lei Saraiva-Cotegipe.
Que é a
reforma da Previdência? Como a Lei da Gargalhada não alcançava nenhum
beneficiário vivo, a reforma da Previdência vai beneficiar trabalhadores quando
eles não existirem mais.
Leio na
edição desta quarta-feira (23) do Jornal do Senado que o presidente Eunício
recebeu, dia 21, representantes da indústria, que vieram lhe entregar as
principais reivindicações do setor. Duas se destacam: um Projeto de Decreto
Legislativo que prevê o fim de normas do Ministério do Trabalho sobre segurança
em máquinas e equipamentos, e a terceirização total e irrestrita da
mão-de-obra.
Como se
vê, é inesgotável a capacidade de se reinventar a escravidão de nossos
trabalhadores.
Emprego,
salário, aposentadoria, desenvolvimento industrial, produção agrícola, inovação
e tecnologia, soberania nacional, segurança, saúde e educação públicas de
qualidade, moradia digna, direito ao lazer e à felicidade, proteção à infância
e aos idosos. É o queremos, é o que basta. Mas nada disso será possível com um
governo que vende até as nossas terras e que ressuscita a Lei da Gargalhada.
Como
discursou o nosso genial Raduan Nassar: tempos tristes, tempos sombrios os
tempos de hoje.
Mas, se a
capacidade dos vende-pátria, vende-soberania, vende-terras, vende-petróleo,
vende-água, vende-dignidade, vende-vergonha parece inexaurível, mais cresce a
responsabilidade dos nacionalistas, dos democratas e dos progressistas em
resistir à destruição do Brasil como Nação.
Rebelar,
resistir, desobedecer, é o nosso dever. Já!
www.cartamaior.com.br 23/02/2017
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