Revolução
francesa no Brasil
Saul Leblon
A eleição de 2018 pode ser a derrubada
da Bastilha. Mas as sirenes da história impõem requisitos inéditos para isso.
Limada pelo bisturi conservador, a
espantosa violência econômica imposta à população brasileira, neste momento, é
confinada no calendário dos eventos pré-golpe.
Algo que ‘passou’, martelam autoridades
e seus autofalantes de aluguel e fé.
‘Culpa da Dilma’, sintetiza o decano da
indignação seletiva da Folha, cuja argúcia econômica foi apurada em Davos.
É assim que o “colunismo isento”
esclarece uma nação afogada em desemprego recorde, cuja indústria retrocedeu ao
tamanho de 2009, o investimento foi empurrado ao nível mais baixo em vinte e
dois anos e a renda per capital diminuiu 9% em relação a 2014, amarrotando o
consumo no patamar de 2011.
‘Culpa da Dilma’... Uma guerra aberta de
interesses naquela que talvez seja a transição de ciclo de desenvolvimento mais
profunda vivida pelo país, em meio à deriva da ordem neoliberal no mundo,
condensada na maior crise do capitalismo depois de 1929, reduzida a isso.
Para consertar ‘a culpa da Dilma’ é
preciso, primeiro, ‘purgar a imundícia’, diz o martelete especializado em
divulgar a economia como um sistema hidráulico em equilíbrio, desde que
dissociado da carne humana enervada nos esqueletos dos pobres.
A expressão é emprestada do presidente
norte-americano Herbert Hoover, que ocupou a Casa Branca nos primeiros quatro
anos da quebradeira iniciada em outubro de 1929.
O esfarelamento econômico e social,
então, era encarado pelo contemplativo Hoover como uma ação autolimpante dos
mercados, da qual o Estado deveria manter distância.
O povo norte-americano foi salvo da
faxina suicida por Franklin Roosevelt.
Quatro anos depois de Hoover deixar uma
sociedade convulsionada por acampamentos de desemprego que acossavam a Casa
Branca e precisavam ser contidos pelo Exército, seu sucessor desativou a
engrenagem infernal da autorregulação dos mercados.
Trocou-a por um poderoso programa de
obras públicas e controle estatal do mercado de dinheiro, logrando tirar a
economia das mãos dos coveiros e os chefes de famílias, do cemitério do
desemprego.
No caso brasileiro a ordem dos fatores
alterou dramaticamente a soma do produto.
Aqui, ‘Hoover veio depois de ‘Roosevelt.
Este instalou com a determinação de
‘purgar’ um ciclo de traços rooseveltianos, ainda que imperfeitos, porque
borrados de juros altos, liberdade para a conta de capitais, câmbio valorizado
e, sobretudo, seu pecado capital: descaso com o papel fiador dos assalariados,
do qual o criador do New Deal norte-americano nunca se descuidou.
Mesmo acusado de comunista pelo “colunismo
isento” da época, Roosevelt não abriu mão de promover a sindicalização em massa
dos trabalhadores que recuperaram seu emprego no New Deal.
Só assim o líder democrata resistiu a Wall
Street e aos viúvos dos mercados desregulados.
No Brasil, todo o aparato público,
incluindo-se o Judiciário e o Legislativo, mas também a mídia e os sindicatos
dos patrões, condensam-se no jato de um imenso wap (Protocolo para Aplicações
Sem Fio) de desinformação, ‘desinfecção’ e desemancipação, sem o contraponto
organizado dos principais alvos do wap
regressivo.
É disso que trata a faxina em curso.
Não de recuperar.
Mas de produzir ruínas.
Para soterrar com elas o pacto social
desenhado na Carta de 1988.
E impor no seu lugar outro, oposto, sem
a devida consulta à sociedade.
Na linha do jato desinfetante
encontram-se o pleno emprego, a maior participação dos assalariados no fluxo da
renda (mas não no estoque), o espraiamento dos direitos sociais, a
multiplicação das oportunidades ascensionais pela educação, as iniciativas de
afirmação cidadã e os instrumentos endógenos de comando do desenvolvimento,
como o Pré-sal, o BNDES, o banco dos BRICSe a UNASUL.
Enfim, a ‘imundícia’ toda que aguçou um
conflito de classes protelado, inicialmente, por um desequilíbrio fiscal e
monetário decorrente da elevada taxa de juro paga pelo Estado para tomar
emprestado aquilo que deveria ser taxado.
Era uma corrida contra o tempo
hipotecada na hipótese de uma recuperação saneadora do comércio internacional,
que afinal não veio.
Os efeitos colaterais dessa corrida para
frente assumiriam,assim, contornos de novos círculos de ferrocada vez mais
estreitos.
Inclua-se aí o custo desindustrializante
do real valorizado para atenuar outra expressão da escalada do conflito, a
inflação, mitigada com importações.
Mas também a asfixia do investimento
público e privado no tríplice garrote de juro alto, subsídios inúteis ao
investimento produtivo num ambiente rentista e desequilíbrio progressivo nas
contas externas.
Não, senhores colunistas, não estamos
diante do cqd (culpa da Dilma).
O nome disso é luta de classes.
Condicionada, no caso, por uma
correlação de forças na qual a desorganização popular, de um lado, e a
reengenharia midiática, de outro, engessariam o poder de iniciativa do governo.
A distinção é preciosa.
Não tanto para expor ao sol a toxidade
da narrativa conservadora.
Mas, sobretudo, para evidenciar os
desafios - graúdos-no passo seguinte da luta pela construção de uma verdadeira
democracia social no país.
‘A culpa da Dilma’, na verdade, camufla
dois incômodos com uma só cajadada.
De um lado, releva a força determinante
da sabotagem golpista, que semeava a ingovernabilidade já em 2013 para colher
frutos nas urnas de 2014 -ou fora delas, se necessário, como foi.
De outro, dribla a fragilidade crucial
decorrente da ausência de organização popular compatível com a transição de
ciclo de desenvolvimento vivida pelo país.
Mais que isso.
Coloca as forças progressistas diante de
uma realidade histórica com a qual tem evitado se defrontar, mas que não poderá
mais postergar na corrida para 2018.
Não é uma referência nova: 1964 já o
havia demonstrado.
Mas se reafirmou agora com virulência
dos rebotes históricos, para sacudir a memória adormecida.
Ao primeiro sinal de aguçamento da
disputa pela riqueza, a elite brasileira recusa-se terminantemente a discutir
soluções coletivas para os gargalos da sociedade e do seu desenvolvimento.
Opta pelo golpe em defesa do interesse
unilateral.
Os fatos são autoexplicativos, mas não
custa rememorar o abc dos mandatos históricos em nosso tempo.
A verdade é que mesmo aquelas tarefas
denominadas genericamente de ‘revolução democrática’, constituídas basicamente
da universalização do acesso aos marcos da civilização, não tem mais sujeito
histórico nas elites.
A liderança do processo terá que ser
assumida por uma frente política solidamente capilarizada em organização
popular de base, aliada a blocos de identidades minoritárias, assentada em
respostas à emergência climática, à desigualdade alarmante nas esferas da
riqueza e da tecnologia, abraçada a novas formas de viver e de produzir e
fortemente comprometida em traduzir tudo isso numa desassombrada estratégia de
inovação em políticas públicas que, de fato, democratizem e valorizem o bem
comum.
Ou isso, ou a queda da Bastilha nunca
ocorrerá por essas bandas.
Partidos progressistas de massa e
comitês de base espalhados por todo o país, se existissem de fato, teriam
impedido a reengenharia midiática de acuar a nação na encruzilhada da falsa
disjuntiva que hoje opõe a purga de direitos ao caos econômico.
Houvesse a organização requerida, a
alternativa crível ao desmonte seria a taxação fiscal da riqueza, não a
privação adicional cobrada da pobreza.
É a consciência desse fio da navalha que
explica a virulência recessiva imposta à sociedade brasileira nesse momento,
como um instrumento funcional de desmobilização política e desarticulação ideológica
enfeixadas no grito de guerra conservador: ‘Culpa da Dilma’.
Ou seja, um dos mais violentos programas
de ‘desemancipação’ social já registrados em tempos de paz e por um período tão
longo de duas décadas seguidas.
‘Significa que toda uma futura geração
está condenada, o que é inaceitável’.
É assim que o relator das Nações Unidas
para Pobreza Extrema, Philip Alston, qualificou a PEC do Teto, em dezembro do
ano passado, antes ainda dos desdobramentos atuais nas esferas da previdência e
pensões rurais, do salário mínimo e dos direitos trabalhistas (pela
terceirização).
Só uma recessão diluviana poderia
escorar um projeto de poder dessa natureza, atado a vinte anos de concordata
social, durante os quais os detentores da riqueza –e agora do poder - avocam-se
a prerrogativa de desativar todo o aparato de direitos sociais e trabalhistas
arduamente acumulados pelo povo brasileiro desde Vargas.
A abrangência e a brutalidade do que
está em curso corresponde a uma ruptura do pacto da sociedade - sem consultá-la,
repita-se, o que dificilmente se completará sem atingir o núcleo duro das
garantias individuais, as liberdades civis e os direitos políticos.
Os liberais que hoje se oferecem à
barganha com o golpe, incluindo-se um pedaço da classe média que supõe assim
garantir suas ‘liberdades’ individuais, rapidamente serão afrontados pela
violência de uma lógica que tem na ganância do mercado, sobretudo financeiro, o
único compromisso sagrado de liberdade a preservar.
De certa forma, o que se assiste hoje no
Brasil, já se disse aqui, é a viagem de volta ao coração liberal reinante no
ventre do capitalismo selvagem dos séculos XVIII e XIX.
O termo ‘desemancipação’, cunhado pelo
filósofo marxista italiano, Domenico Losurdo, descreve o moedor de carne humana
em ação nesses tempos pioneiros.
Mais que negar novos direitos, o que
ressalta do bordão atual das reformas é a mesma determinação de ‘desemancipar’.
Ou seja, devolver ao absoluto desamparo
a parcela majoritária da sociedade, privada dos meios pelos quais se
reproduziam as relações de poder e produção no capitalismo.
É disso que se trata no caso das
reformas trabalhista e previdenciária anunciadas pelo golpe no Brasil. O mesmo
se pode dizer das consequências da PEC 55 no acesso a direitos públicos
essenciais -a escola e a saúde, entreoutros.
O conjunto requer uma ruptura de ciclo
histórico para se instalar. Mais que um golpe parlamentar, o regime da ‘desemancipação
‘ no século XXI exige a fascistização dos instrumentos de Estado.
A escalada policial de um Ministério Público
e de um juiz que assombra a cidadania brasileira ao subordinarem o Estado de
Direito a conveniências partidárias ilustra o calibre da espiral em marcha.
Dela não escapará a classe média. Hoje
simpática ao regime, amanhã será ela também tragada no arrastão de direitos e
escolhas individuais, pela anemia das instituições e a desativação de sistemas
regulatórios imiscíveis com a supremacia dos mercados entregues a sua própria
lógica.
A lavagem ideológica promovida pela
reengenharia midiática inocula na sociedade a anestesiante ampola da
naturalização de uma ruptura que hoje a imobiliza, amanhã a escravizará.
A receita do Estado mínimo suprime do
arsenal público não apenas as regulações que asseguram os diferentes espaços de
escolha e liberdade, como a estabilidade da taxa de investimento na economia.
Sem financiamento público, grandes obras
e orçamentos sociais, o futuro do mundo do trabalho, inclusive o da classe
média, insista-se, será debulhado num angu de terceirizações, precarizado e
‘bicos’, que podem até receber denominações em inglês, mas nem por isso serão
outra coisa que não o declive social depressivo e aterrador.
Esse é o preço oculto naquilo vendido
pela mídia nesse momento como o repto redentor ao lulopopulismo. Ou seja, uma
subordinação escravizante do desenvolvimento, da democracia, da política e
demais instâncias da sociedade –inclusive a subjetividade do nosso tempo, aos
impulsos irrefletidos dos mercados ordenados pelo retorno especulativo
incompatível com a sobrevivência da economia, da sociedade e da natureza.
A estagnação atual nas economias ricas
deveria servir de alerta ao evidenciar a falta que faz tudo aquilo que a
democracia e o Estado cederam ao mercado nessas sociedades nos anos de apogeu
do neoliberalismo.
É nesse deserto do real que o
conservadorismo brasileiro se inspira para golpear a democracia e reproduzir
aqui receita que estrebucha no planeta.
O que as ressurgências do capitalismo
selvagem oferecem à classe média brasileira agora - como o fazem os ideólogos
da terceirização e da prevalência do negociado sobre o legislado na CLT- é a
premiação do mérito individual sobre o direito social universal.
A platitude baseia-se na crença de que a
construção da sociedade é movida pelo interesse egoísta extrapolado,
mecanicamente, na rudimentar ilação de que a luta individual pela felicidade
leva ao fastígio coletivo.
Aclamados pensadores liberais, como Adam
Smith, condicionavam na verdade a centralidade do interesse próprio à
irrepreensível obediência a referências morais e religiosas.
Esse corpo moral percorreria um trilho
ético rigoroso, rumo a uma comunidade de laços e valores impecavelmente compartilhados.
Nesse ambiente sacro o papel profano do
Estado seria mínimo.
No capitalismo realmente existente as
coisas se dão de forma algo diversa.
Não é difícil - aliás, é muito fácil -
deduzir o resultado da supremacia do interesse egoísta em sociedades nas quais,
ao lado da luta desesperada de milhões de indivíduos desvalidos, avultam
interesses corporativos desmesurados, sobretudo aqueles cujo produto é o
dinheiro, sua reprodução e as suas consequências.
A crise do nosso tempo é obra dessa assimetria
leonina, vendida aqui como solução.
A inexcedível capacidade das grandes
corporações submeterem indivíduos atomizados deixa pouco espaço à acomodação
espontânea dos interesses contrapostos em uma sociedade onde tudo,
rigorosamente tudo, passa a ser objeto de compra, venda e lucro.
Não há mais espaços sagrados.
Ou a regulação democrática impõe limites
à sede do capital, ou a sociedade toda desidratará em servidão e catatonia.
É sob esse pano de fundo que a ‘desemancipação’
toca as trombetas do apocalipse social no Brasil, cujo Estado foi assaltado
pelos mordomos dos mercados.
A marcha dos acontecimentos não mente.
A estratégia de ‘desemancipação’ não se
satisfará em extorquir uma década de ganhos reais de poder de compra dos
salários.
A faxina requerida é tão virulenta que
convoca o árduo trabalho do escovão repressivo e do detergente ideológico para
dissolver qualquer traço de resistência indevidamente alojado em estruturas de
produção, consumo, serviços, meio ambiente e participação política.
As sirenes da história anunciam
confrontos intensos no front da liberdade e da economia.
A eleição de 2018 pode ser a derrubada
da Bastilha.
Mas para isso as forças progressistas
terão que se convencer, de uma vez por todas –e convencer parte da classe
média- que direitos clássicos das revoluções burguesas do século XVIII, hoje,
só tem viabilidade amarrados a uma poderosa alavanca de organizações sociais,
que subordinem a força criativa dos mercados aos projetos, metas e direitos
pactuados pela democracia.
Revolução Francesa no Brasil é igual a
Lula nos comitês de base.
Ou isso, ou a restauração em curso.
Com a violência neoliberal ungida em
Imperador do Brasil.
www.cartamaior.com.br 12/03/2017
Nenhum comentário:
Postar um comentário