A importância
de sonhar acordado
Eles podem até cassar Lula, mas não
poderão impedi-lo de colocar a força e o simbolismo de sua liderança em um
programa de reencantamento da luta democrática...
Saul Leblon
Depois de um domingo em que a Folha deu
chamada na primeira página para que Luciano 'Caldeirão' Huck, a 'nova peça de
reposição' de FH, nos informasse o fato relevante de que 'pode contribuir' com
o país - embora ainda não na condição de presidenciável.
E que a outra peça do estoque de
auditório, o prefake de São Paulo, elevou os decibéis dos ganidos de ódio,
ciúme e sabe-se lá mais o quê contra Lula, em Nova Iorque.
Ao final de um dia em que somos
informados de que há 200 mil caminhões parados no país, estacionados nas
garagens, porque a economia do golpe colapsou a nação e colapsou a ponto de
tirar das estradas dois anos de produção das fábricas de caminhões - mas isso
não é manchete do 'sério' jornalismo de economia, que prevê, há 365 dias, a
'retomada amanhã, graças à confiança dos mercados'.
Depois de Merval Pereira nos dar ciência
de que eles perderam qualquer escrúpulo, emitindo uma ordem de prisão à Dilma,
no Globo.
Ao ficar evidente que vão para o ‘tudo
ou nada’ depois do contravapor de Lula em Moro, em Curitiba.
E evidenciado que a 'prova cabal' da
delatora Mônica Moura é uma montagem rudimentar de e-mail, de qualidade
equivalente à ficha falsa da Dilma Rousseff, manipulada pela Folha em 2009.
Depois de tudo isso, para não se render
à prostração, ou ao menos para mitigar o fardo dos dias que virão, vale reler
um trechinho que Antonio Candido nos legou.
É curto, mas precioso.
Com a sutileza do refinado intelectual
que nos deixou na semana passada, aos 98 anos, essas poucas linhas nos devolvem
o encanto de resistir à mediocridade infecciosa dos tempos sombrios, quando a
ganância se despe das aparências e convoca a escolta da violência política para
a defesa intransigente da desigualdade como condição natural da sua riqueza.
O contrato antissocial do golpe desvela
a visceral necessidade de um projeto de futuro - esse de direitos universais,
condensado por Antonio Candido na radicalidade do direito humano à arte -
contraposto à condenação à pobreza integral que a coalizão da mídia com a
escória e o dinheiro preconiza.
Quando a vilania se outorga o direito de
interditar a reflexão da sociedade sobre as escolhas do seu destino, o antídoto
ao pesadelo é exercer o direito transgressor de sonhar acordado.
Hoje no Brasil isso implica resgatar a
confiança da população na capacidade coletiva de construir uma democracia
social a partir da assembleia das ruas na maior oitava maior economia do mundo.
Não é pouco. Mas a alternativa é a
servidão incondicional aos mercados por pelo menos 20 anos.
Se Lula liderar esse mutirão
transgressivo dando às ideias o seu peso material em caravanas pelo país, terá
subtraído ao golpe o derradeiro trunfo que seus cinzentos escribas antecipam na
mídia: impedi-lo de concorrer em 2018.
Poderão fazê-lo até.
Mas não podem impedir que aquilo que ele
simboliza se materialize em um programa de reencantamento, capaz de condensar
isso que Antonio Candido nos confiou num quase poema em prosa: a importância de
sonhar acordado para que o futuro seja algo mais que a simples reiteração do
presente.
Com a palavra, Antonio Candido:
'A literatura é o sonho acordado das
civilizações. Portanto, assim como não é possível haver equilíbrio psíquico sem
o sonho durante o sono, talvez não haja equilíbrio social sem a literatura.
Deste modo, ela é fator indispensável de humanização - uma das coisas mais
importantes da ficção literária é a possibilidade de 'dar voz', de mostrar em
pé de igualdade os indivíduos de todas as classes e grupos'
(Antonio Candido, em “O Direito à
Literatura”,1988, texto no qual inclui a arte no rol dos direitos humanos; via
El País)
Leia também sobre a mesma urgência, o
texto indispensável do professor Aldo Fornazieri, que exorta a resistência
democrática a cruzar o Rubicão das hesitações e sectarismos para fazer o que
resta nesta hora crucial da vida brasileira: invadir Brasília. Aqui:
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