Roberto Amaral
Nesta fase do golpe, o
objetivo é impedir que um novo Congresso eleito ouça a voz das ruas e remova as
‘reformas’ do governo ilegítimo.
Uma vez mais, e jamais
suficientemente, é preciso pôr à luz do sol o caráter do golpe em curso, como
forma de antever seus próximos passos, e a eles nos anteciparmos.
Jamais será excessivo
destacar seu caráter oligárquico, antinacional e antipopular, autoritário e
desconstrutor da ordem republicana. Mas agora é preciso, também, denunciar as
maquinações contra a política e a democracia representativa que, após o hiato
dos 21 anos imposto pela última ditadura, nosso povo vem, aos trancos e
barrancos, tentando reconstruir.
Quando é mais grave a
fragilidade dos partidos políticos, mais aguda a crise de representação das
casas legislativas (segundo pesquisa IPSOS, 65% dos brasileiros não confiam no
Congresso), quando fica exposta a dissonância entre a vontade popular e o papel
de seus governantes, a atual e mercenária maioria parlamentar, sob a regência
de Michel Temer, anuncia novos ataques à soberania popular, mediante as
propostas de Parlamentarismo (ou “Presidencialismo mitigado”, como parece
preferir o antigo operador do Porto de Santos) e o tal do ‘Distritão’.
As duas propostas são
complementares, imbricadas, e visam tão simplesmente afastar ainda mais o povo
do processo político, promovendo a exclusão das forças populares. Legislando
ostensivamente em causa própria, a maioria parlamentar – empresários,
ruralistas, seitas neopentecostais, o ‘Centrão’, os grileiros, os sonegadores
de impostos e seus despachantes, a ‘bancada da bala’, a burguesia rentista, os
assaltantes do erário – objetiva impedir a renovação que a consciência nacional
exige.
‘Distritão’ e Parlamentarismo
enfeixam as novas regras eleitorais cozinhadas na Câmara dos Deputados com o
objetivo de reduzir ao mínimo a autonomia da soberania popular.
O ‘Distritão’, mostrengo
político e constitucional sob qualquer análise, é projeto velho das velhas
raposas e foi proposto, de início, pelo então deputado Michel Temer. O cúmulo
de estapafurdice se deu numa reunião do Conselho Político da Presidência da
República, ainda no governo Lula.
Sua única ‘contribuição’ (de
Temer) em todas as reuniões do Conselho foi essa, rechaçada pelos demais
presidentes de partidos. A unanimidade contra traduzia uma razão gritantemente
lógica: o ‘Distritão’ significa a desmontagem do regime de partidos. A quem
pode interessar tal projeto em uma democracia representativa, por definição
dependente de um sólido arrimo partidário?
Poucos anos à frente, o mesmo
deputado Temer (o menos votado na bancada paulista) é eleito vice-presidente da
República com os votos de Dilma, e, imediatamente esquece o tema, que voltaria
à tona em 2015, porém, desta feita, mediante projeto de lei de seu comparsa e
então presidente da Câmara dos Deputados, o hoje presidiário Eduardo Cunha. O
projeto, apesar de Cunha, foi rejeitado. Ainda apesar de Cunha, foi derrotada,
naquele mesmo 2015, a proposta de ‘sistema distrital misto’, retomada agora
pelo tucanato, sempre tardio.
Por que voltam agora, um e
outro? Porque não basta depor Dilma
Rousseff e não basta impedir a candidatura de Lula (embora isso seja
fundamental para os desígnios futuros da Casa Grande), e mesmo não basta a
desnacionalização de nossa economia, a recessão, a desindustrialização e a
reprimarização do setor produtivo, o arrocho salarial e desemprego (preço que
os assalariados pagamos para financiar a farra dos juros da dívida).
Não basta mesmo a destruição
dos direitos dos trabalhadores, nem mesmo a reintrodução do trabalho escravo no
campo, projeto apresentado por deputado do PSDB que, em pleno terceiro milênio,
permite que o empregado rural possa receber, pelo seu trabalho, “remuneração de qualquer espécie”, ou seja,
ao invés de salário, um naco de rapadura com farinha, uma choça para morar, um
par de sandálias de rabicho ou aquela calça velha que o fazendeiro não quer
mais vestir.
O essencial, nesta fase do
golpe, é impedir que um novo Congresso (novo segundo o caráter de sua
composição), ouvindo a voz das ruas, remova, como entulho, as ‘reformas’ do
governo ilegítimo levadas a cabo por um Congresso à míngua de representatividade.
Por isso, e por óbvio, as
eleições de 2018, para ocorrerem, precisam ser ‘seguras’. Daí o ‘Distritão’,
que destrói a fidelidade partidária e os partidos, e, ele sim, inviabiliza a
governabilidade, pois ao invés de 20 ou 30 partidos, o governo terá de
negociar, na Câmara, com 513 ‘partidos’.
Transformando a eleição
proporcional numa cara eleição majoritária, sem a mediação dos partidos, o
projeto Temer-Cunha escancarará as portas dos Legislativos – e é isso o que
pretende a maioria de hoje – para os representantes das corporações políticas e
econômicas (as FIESPs, CNIs e quejandas), os milionários, os rentistas dos
dinheiros públicos, os titulares de cargos eletivos, os doleiros, os ‘bispos’
de seitas religiosas conhecidas pelo seu reacionarismo, as celebridades
midiáticas e os meliantes de carteirinha, à procura, a qualquer preço, de
imunidade parlamentar (Informa André Barrocal, Carta Capital de 16 de agosto
que 300 a 400 dos atuais congressistas são investigados pelo STF e 55 são réus
em 100 ações penais). Todos estarão bem representados, menos o povo.
O golpe
midiático-parlamentar-judicial-rentista, operado pela aliança do agronegócio
com o capital financeiro, nacional e internacional, se instala com a deposição
de Dilma e, a partir daí, passa a desenvolver-se em etapas, e a primeira e a
mais grave delas é a destruição do projeto de Estado em construção desde a
revolução de 1930.
A operação está em curso, e
assim permanecerá, enquanto não for possível remover o governo de fato que aí
está. A destruição da Previdência Social é apenas uma das metas imediatas do
golpe, passado o desmonte da legislação trabalhista. Outras virão.
Como ignora quanto tempo
permanecerá dormindo no Jaburu e recebendo visitas noturnas nada republicanas,
o presidente denunciado como corrupto, e sua grei, correm com as ‘reformas’.
Entrementes, há a ameaça de
eleições gerais em 2018, pleito que a correlação de forças reinante não
conseguiu, até aqui, reunir condições de
evitar, embora o ‘mercado’, revelando a alma do golpe, diga (Valor, 21.6.2017)
que “as eleições de 2018 representam risco real à agenda de reformas
necessárias para o país voltar a crescer”.
Daí o apelo ao ‘Distritão’
(que assegurará o controle dos legislativos pelo poder econômico) e o
Parlamentarismo, que anulará a eventual eleição de um presidente ‘fora do
controle’. Essa ameaça, hoje, tem nome e sobrenome: Luiz Inácio Lula da Silva,
alternativa popular que a Casa Grande não admite.
Jamais admitiu.
Em 1955, sem forças para
derrotar a candidatura de Juscelino Kubitscheck, a direita civil-militar
intentou impedir sua posse. Em 1961, sem forças para evitar a posse de Jango
(pela qual gritavam as ruas em esplêndida unanimidade), negociou o
Parlamentarismo, que, no Brasil, não é um sistema de governo, mas um instrumento
de golpe de Estado.
Como é sabido, convocado a
falar em Plebiscito (1963), o povo impingiu ao Parlamentarismo uma derrota
esmagadora. Na Constituinte, derrotado no Plenário, o PSDB conseguiu a
convocação de novo Plebiscito (1993) para decidir qual sistema de governo o
povo preferia, optando entre Presidencialismo, Parlamentarismo e Monarquia.
Outra rejeição ao parlamentarismo, outra consagração do Presidencialismo.
História monótona: em 1989, a
Rede Globo interfere no processo eleitoral manipulando a cobertura do último
debate entre os candidatos; o presidente da FIESP (sempre ela!) anuncia que
milhares de empresários brasileiros estavam se preparando para abandonar o país
“se o metalúrgico for eleito”. A liderança de Lula nas pesquisas de intenção de
votos, em 1994, justificou uma emenda constitucional reduzindo de cinco para
quatro anos o mandato presidencial. Inesperadamente eleito FHC, o Congresso
aprova nova emenda, desta feita para permitir a reeleição.
Hoje, a ameaça é, uma vez
mais, a eventual eleição do sapo barbudo. Daí os processos que se acumulam
contra o ex-presidente, com o único e claro objetivo de tirá-lo da disputa. Sem
o metalúrgico no páreo, a Casa Grande conta ganhar as eleições.
Mas o seguro morreu de velho.
Como precaução, tenta implantar o rejeitado Parlamentarismo, no qual o
Presidente da República manda tanto quanto a Rainha Elizabeth. Nesse caso,
tanto faz Lula ou Bolsonaro, pois o controle ficará sempre com o Congresso,
que, na próxima legislatura, mercê das regras eleitorais em discussão, será,
certamente, mais corrupto e mais ilegítimo.
No Parlamentarismo, a classe
dominante, a mesma gente que vem mandando e desmandando desde a Colônia, não
corre risco, pois, se em eleição direta jamais emplacará em 2018 um filho seu
na Presidência, em eleição indireta jamais será eleito um Lula.
Esse é o preço que nos cobra
a versão trágica da História recorrente.
STF
O grave não é nem a
‘disenteria verbal’, nem a ‘decrepitude moral’ (palavras de Janot) do ainda
ministro Gilmar Mendes, mas a omissão cúmplice do STF e do CNJ ante seu
comportamento, seu falar e seu agir.
* Roberto Amaral é escritor e
ex-ministro de Ciência e Tecnologia
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