quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Sem Escola

11/11/2016 12:11 - Copyleft

Sem Escola

o Escola Sem Partido nutrem em seus seguidores um ódio aos intelectuais em geral e aos professores em particular.


Lidiane Soares Rodrigues, Cientista Social, UFSCar
EBC
Há um decênio, quem ousasse dispor de algum tempo lendo ou pensando a respeito do fenômeno dos “fast thinkers” seria advertido pela fração cultivada e progressista de seus amigos: “não ligue para isso, não são sérios”. Não são. Porém,  pulularam vertiginosamente e ganharam espaço na cena político-cultural, camisetas em manifestações anti-petistas que pontilharam os dois últimos anos, slogans com seus nomes, etc. É arriscado nomeá-los. É também dispensável. São em geral bem pagos, anti-petistas, insuflam ódios de todas espécies em gradientes diversificados, foram ou são professores, ostentam um título aqui outro acolá, dependem da hierarquia da cultura legítima, e, ressentidos dela, são também anti-intelectualistas. Outra manifestação político-cultural de um Brasil retrógrado, que pensávamos ter superado,  e que nos aprazemos em afirmar seu rebaixamento intelectual atende pelo nome de Escola sem Partido (doravante, ESP).  Tanto os fast quanto o ESPnutrem em seus seguidores – ainda reservo a palavra militante para causas que me parecem mais dignas – um ódio aos intelectuais em geral e aos professores em particular. São anti-intelectualistas, como cabe à tradição da direita, como sabe quem conhece As ciladas da diferença, do saudoso professor Antonio Flavio Pierucci. O argumento a seguir pressupõe ter em vista as intervenções políticas destas duas aberrações com as quais vamos nos habituando a conviver. Entrementes, chama a atenção para a proposta do ESP de eliminação da escola na formação das pessoas e não dapolítica. Explico-me.
 
Em primeiro lugar, quem poderia se enganar a respeito de as posições ideológicos serem veiculadas de numerosas maneiras e por professores de todas áreas. Mirar nos de Humanidades (Sociologia, História, Geografia) parece corresponder às fantasias em torno destas disciplinas e à ignorância a respeito da relação de dominação legítima que alicerça qualquer trabalho pedagógico. Exemplo? O indivíduo que ensine matemática e cerceie, talvez mesmo irrefletidamente, a voz de suas alunas em proveito dos alunos homens, tem mais peso político no condicionamento de uma subjetividade obediente e submissa delas / altiva e segura deles do que o tipo “professor de história” que defendesse Stalin imaginando converter alunos ao comunismo. Este joga contra ele próprio, no plano dos conteúdos. Aquele joga a favor da reprodução social e política de modo em geral imperceptível, e no plano das relações simbólicas.
 
Em segundo lugar, este não é o único equívoco do ESP. Ao propor que a lei cerceie os conteúdos ideológicos veiculados pelos professores, o ESP exprime sua ignorância a respeito do que seja tanto o trabalho pedagógico quanto da autoridade legítima conferida pelos saberes a seus portadores. É do conhecimento de todo professor que entre o que se planeja inculcar nos alunos e o que estes fazem com o que nos esforçamos por ensinar há uma distância condicionada pelas predisposições subjetivas, pelo meio familiar, pelas expectativas dos mesmos.  Diverte imaginar que o professor pudesse ter tanto poder quanto imagina o ESP.
 
Finalmente, o controle sobre os conteúdos ideológicos e partidários emitidos pelos professores, como tem sido dito, inviabilizaria a menção a autores clássicos, a episódios históricos,  a um repertório cultural ao qual algumas camadas sociais não teriam notícia senão por meio da escola formal. Controlar o professor consiste em privar o aluno. Eis o fundo mais substancial da proposta. Ao  afirmar que os pais têm direito de educar os filhos segundo sua própria orientação ideológica e daí derivar que vale cercear as opiniões emitidas pelos professores, estamos por um triz da defesa da educação doméstica dos filhos. Trata-se de um dos objetivos mais perigosos do ESP. E talvez aquele em que mais investem esforços – não exagero nem alardeio. Vivemos em tempos nos quais o retrocesso vinga.





 
Naturalmente, a referência que ocorre a todos é o seminal “Ciência como Vocação” de Max Weber. Mais precisamente a passagem em que, para demonstrar a impossibilidade da ciência dirigir a ação, escolhe o caso da eutanásia. A medicina pode prolongar a vida, mas não dizer se isso é desejável, tampouco se escolha por interrompê-la é defensável. Dito de outro modo, a ciência pode auxiliar a se viver, dotando os indivíduos de competências e disposições que tornam suas escolhas mais conscientes e refletidas. Mas não pode assegurar que elas sejam corretas.  A vulgarização desta ideia, a obsessão Weber x Marx como autores respectivamente de pessoas equilibradas x exaltadas e todo o qüiproquó que a reprodução industrial de citações possibilita impede que se extraia dela um princípio emancipador. Com efeito, sabe-se, Weber estava se recusando a assumir o papel do profeta, solicitado por seus alunos e admiradores. Tratava-se de preservar o espaço da sala de aula, no qual a assimetria entre as partes que o constituem é pressuposto do exercício pedagógico. Precisamente por este motivo – sua autoridade legítima, cujo esteio é o saber especializado, aquele mesmo que não é capaz de orientar a ação, senão de torná-la mais refletiva – não se tornaria guia de grupo ou indivíduo algum e exerceria a autonomia de sua cátedra, jamais confundindo-a com um púlpito. Daí, duas conseqüências. Colocaria seus esforços a serviço da formação de indivíduos habilitados a tomar a palavra e formular suas posições no espaço público, em que são politicamente iguais a seus professores. E manteria, na sala de aula, a hierarquia que expulsa a ingerência daquele que não dispõe da autoridade legítima na matéria.
 
Quem, entre nós, estava preparado para enfrentar a avalanche e não apenas para ironizá-los por seu histrionismo retrógrado, por seu jeitão anacrônico meio carcomido e sem vez?  Esse decreto fácil não é mais suficiente. Lamentável – mas compreensível – também alguns críticos do ESP parecem confusos. Defendem a “pluralidade” nos marcos de um princípio liberal de mercado de opiniões: os estudantes devem ser expostos a várias opiniões e escolherem as suas por si mesmos.  Pareceria um self-service de pratos pós-tudo-junto-misturado – liberal de esquerda; esquerda internacionalista; anarco-stalinismo; eurocomunismo; conservador-liberal; liberal-conservador; comunista de direita. Misture no seu experimento um pouquinho de um ou de outro e dê origem a novo tipo no cardápio. Entretanto, o que está permanentemente em jogo é a disputa pelo conteúdo das posições básicas – esquerda / direita – e como se vê recentemente, pela legitimidade de uma ou de outra.  As respostas imediatas e ingênuas têm sido – os alunos devem estar expostos à “diversidade” de conteúdo das opiniões. Tudo poderia ser resolvido pela simetria: um professor de esquerda, outro de direita –e, no limite, um machista e uma feminista. 
 
A discussão ignora a seara complexa do estímulo ao interesse pela vida política; o reconhecimento dos átices da disputa classificatória na origem de tantas combinações aberrantes e o discernimento pressuposto no entendimento e no respeito às regras que regem a legitimidade dos poderes:  o letramento político, em suma. É ele que os fast e o ESP pretendem tornar impossível. É sem ele que a pluralidade pode responder tranquilamente à objeção da “escola unilateralmente ideológica”.


Créditos da foto: EBC

Nenhum comentário:

Postar um comentário