UM JUIZ QUE ATUA FORA DA LEI
Antônio Alberto Machado*
Hoje, qualquer opinião que se emita
sobre a operação Lava-Jato – seja a favor ou contra, seja de crítica ou de
apoio -, será sempre entendida e julgada pelo viés ideológico. Não adianta
negar, o país ficou dividido entre os que aprovam e os que reprovam essa
operação, na mesma medida em que se dividiu entre os que apoiavam e os que
reprovavam o governo petista. Mas, sejam quais forem as ideologias e as preferências
políticas de cada, algumas coisas na operação Lava-Jato são muito polêmicas,
tanto do ponto de vista político quanto jurídico – e algumas constituem
verdadeiros absurdos.
Se não, vejamos:
·
É polêmico – e,
para mim, um verdadeiro absurdo – que as delações premiadas no âmbito da Lava-Jato
sejam obtidas mediante prisão ou ameaça de prisão. A essência desse instituto,
e o que o faz tolerável, é a espontaneidade do delator. Quando a delação é
obtida mediante tortura física e psicológica – e decerto que a prisão e a
ameaça de prisão constituem suplício físico e psicológico – ela deixa de ser
espontânea e se transforma numa prova ilícita – expressamente vedada pela
Constituição Federal.
·
É polêmico – e outro
absurdo – que os advogados dos réus na Lava-Jato só tenham acesso ao conteúdo
das delações feitas contra seus clientes na véspera das audiências,
dificultando-lhes a articulação e o exercício do direito de defesa, isso quando
a Lei Maior assegura exatamente o contrário, isto é, assegura a todos os réus o
direito ao contraditório e à ampla defesa – tal como impõe o “devido processo
legal” consagrado na Constituição Federal.
·
É polêmico – e autêntico
absurdo – que o juiz da Lava-Jato tenha mandado conduzir coercitivamente um
ex-presidente da República até uma repartição policial sem intimá-lo
previamente para comparecer perante a autoridade de polícia. Essa condução
constrangedora só tem lugar quando o conduzido teima em não atender à intimação
da autoridade – do contrário, é uma medida que ofende abertamente o direito de
ir e vir consagrado na Constituição Federal.
·
É polêmico – e mais
um absurdo – que esse mesmo juiz tenha determinado a interceptação ilegal de
uma conversa telefônica entre uma presidenta e um ex-presidente da República,
e, depois, tenha revelado através da mídia o conteúdo dessa conversa, com o
claro propósito de influenciar no delicado jogo político por que passava o país
às vésperas de um processo de impeachment, Essa divulgação é crime e ofende o
sigilo das comunicações telefônicas consagrado na Constituição Federal.
·
É polêmico – e um
rematado absurdo – que o juiz da Lava-Jato tenha mandado “grampear” o telefone
dos advogados de réus, e do defensor de um ex-presidente da República,
malferindo assim a inviolabilidade dos escritórios de advocacia, o direito de
defesa, o direito de ampla defesa, o direito ao livre exercício da profissão de
advogado e o princípio da lealdade processual – tudo isso configura afronta à
lei e aos ditames da Constituição Federal.
·
É polêmico – e outro
absurdo – que esse juiz tenha cometido essas arbitrariedades todas, tenha
reconhecido publicamente que as cometeu, e, em seguida tenha sido “perdoado”
pelo Supremo Tribunal Federal, mesmo depois de o ministro relator do processo
da Lava-Jato no STF ter afirmado, nos autos e por escrito, que a atitude do
juiz “comprometia um direito fundamental” de dois ex-presidentes da República, aliás, um direito fundamental consagrado na Constituição
Federal.
·
É polêmico – e um
flagrante absurdo – que o juiz da Lava-Jato tenha mandado prender um
ex-ministro de Estado do governo petista, e, menos de cinco horas depois,
porque descobriu que a mulher do ex-ministro estava sendo internada com câncer,
tenha revogado essa prisão por considerá-la desnecessária, Isso viola o direito
constitucional de liberdade, a dignidade humana, e a presunção de inocência
consagrados na Constituição Federal.
·
É polêmico – e absurdo
também – que o juiz da Lava-Jato tenha feito aliança com a mídia empresarial
para exercer melhor suas funções de magistrado, e, por força dessa aliança
fizesse “vazar” informações ao mais poderoso grupo de mídia do país, com o
insofismável propósito de predispor a opinião pública contra os réus que ele,
juiz, mandava prender. Isso viola o sigilo das delações, o direito à
privacidade e o princípio da presunção de inocência inscritos na Constituição
Federal.
·
É polêmico – e outro
injustificável absurdo – que um juiz de direito, no exercício de suas funções
públicas, faça alianças com a mídia privada. E, além disso, aceite premiação
concedida publicamente por essa mídia, mesmo sabendo que ela é adversária dos
réus da Lava-Jato, que ela não cansa de manipular informações, e que, no
passado, até já apoiou a ditadura militar. Isso fere mortalmente o princípio
republicano e a independência do Judiciário consagrada na Constituição Federal.
Porém, o mais polêmico e absurdo é ver
agora o Tribunal Regional Federal da 4ª Região render-se ao óbvio e reconhecer que
as práticas do juiz da Lava-Jato são realmente ilegais, pois “escapam ao
regramento” do Direito. Mas, segundo esse mesmo tribunal, apesar de ilegais,
trata-se de “soluções inéditas” que devem ser toleradas porque o processo da
Lava-Jato é também um “processo inédito”. Em suma, o tribunal afirma, por
escrito, que o Direito aplica-se aos “casos comuns” em geral; mas, à Lava-Jato
aplicam-se, não a Constituição e o Direito, e sim as “soluções inéditas”, ou
seja, as soluções buscadas fora do Direito, ou fora do “regramento comum”. Com
essa retórica canhestra, esse tribunal federal acaba de proclamar que a lei e a
Constituição não valem para o processo da Lava-Jato, ou, noutros termos, admite
expressamente que esse processo tramita mesmo perante uma lei e um juízo de exceção.
Nem no tempo da ditadura militar isso
ocorreu. É certo que os militares nos outorgaram uma Constituição autoritária (1967-69);
é certo também que eles editaram um ato de exceção (AI-5); mas, mesmo a
Constituição autoritária dos ditadores, e mesmo o Ato Institucional nº 5,
valiam para todos: igualmente, isonomicamente, o que não ocorre agora, porque,
segundo esse Tribunal Federal do Sul, nem a lei nem a Constituição valem para
os réus da Lava-Jato.
Isso já não é apenas polêmico, nem
somente um absurdo, isso já passa a ser simplesmente assustador.
* Promotor de Justiça
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