Trump não
significa o fim do ciclo progressista na América Latina
No último ano, falar do “fim do clico progressista” virou moda na
América Latina. Uma das possibilidades para tão temida e infundada tese era a
continuidade das políticas de livre comércio e de globalização comercial
impulsionadas por Washington desde os tempos de Bill Clinton e que seus
admiradores pensavam que seriam continuadas por sua esposa Hillary para
outorgar sustento às tentativas de recomposição neoliberal em curso na
Argentina e no Brasil.
Atílio Borón*
Paradoxalmente, a eleição de um xenófobo e misógino poderia abrir, para
a América Latina, oportunidades para romper a camisa de força do
neoliberalismo.
Mas confrontados pelo tsunami Donald Trump, se veem desconcertados, e
poucos, tanto aqui como nos Estados Unidos, conseguem compreender o que aconteceu.
Caíram nas armadilhas das pesquisas que fracassaram na Inglaterra com o Brexit,
na Colômbia com o “não”, na Espanha com o Podemos
e agora nos Estados Unidos ao prognosticar por unanimidade o triunfo da
candidata do partido Democrata. Também foram vítimas do microclima que
normalmente acompanha certos políticos, e confundiram as opiniões que
prevaleceram entre os assessores e conselheiros de campanha com o sentimento e
a opinião pública do conjunto da população norte-americana, esta sem educação universitária,
com altas taxas de desemprego, economicamente arruinada e frustrada pelo lento,
mas inexorável desaparecimento do sonho americano, convertido em um
interminável pesadelo.
Por isso falam da “surpresa” de quarta-feira (9) pela madrugada, mas como
observou, então, com astúcia Omar Torrijos, líder da Revolução no Panamá, na
política não há surpresas, há surpreendidos. Vejamos algumas das razões pelas
quais Trump se impôs nas eleições.
Primeiro, porque Hillary Clinton fez sua campanha proclamando o orgulho
que enchia seu espírito por ter contribuído com a administração de Barack
Obama, sem parar um minuto para pensar que a gestão de seu mentor foi um
verdadeiro fiasco. Suas promessas de “sim,
nós podemos” foram severamente sepultadas pelas intrigas e pressões do que
os mais agudos observadores da vida política norte-americana – esses que nunca
chegam aos grandes meios daquele país – denominam “o governo invisível” ou
“Estado profundo”. As mais módicas tentativas reformistas de Obama no plano doméstico
naufragaram sistematicamente, e nem sempre por culpa da maioria republicana no
Congresso.
Sua intenção de fechar a penitenciária de Guantánamo (Cuba) se diluiu
sem deixar maiores rastros e Obama, laureado com um não merecido Prêmio Nobel,
careceu de coragem necessária para defender seu projeto e se entregou sem lutar
diante dos falcões.
Assim como ocorreu com o “Obamacare” [programa social de Obama], a
malfeita reforma do absurdo, caríssimo e ineficiente sistema de saúde dos
Estados Unidos, fonte de críticas contundentes, sobretudo entre os eleitores da
terceira idade, mas não só entre eles. Não teve melhor sorte a reforma
financeira, logo no início da crise de 2008 que atingiu a economia mundial em
uma onda recessiva que não dá sinais de diminuir e que pese as promessas vazias
produzidas pela Casa Branca e pelas distintas comissões do Congresso, manteve
ilesa a impunidade do capital financeiro para fazer e desfazer seus caprichos,
com as habituais consequências.
Enquanto as receitas da maioria da população economicamente ativa
registravam – não em termos nominais, mas reais – um estancamento de quase meio
século, os lucros de 1% mais rico da sociedade norte-americana cresceram
astronomicamente. Tanto é assim que um autor como Zbigniew Brzezinski, com tão
pouco afeto pelas categorias de analises marxistas, vinha há algum tempo
expressando sua preocupação caso os fracassos da política econômica de Obama
incendiassem a fogueira da luta de classes nos Estados Unidos. Na verdade, esta
vinha desabrochando com crescente força desde o começo dos anos 90 sem que ele,
e a grande maioria dos “especialistas”, se dessem conta do que estava ocorrendo
debaixo de seus narizes.
Só que a luta de classes no coração do sistema imperialista não pode
ter as mesmas formas que este enfrentamento assume na periferia. É menos
visível e ruidoso, mas nem por isso inexistente. Vem daí a tardia preocupação
do aristocrata polaco-americano Zbigniew Brzezinski. Em matéria de reforma
migratória, Obama tem a duvidosa honra de ter sido o presidente que mais
deportou imigrantes sem documentos, incluindo um exorbitante número de crianças
que queriam se reunir com suas famílias. Em resumo, Hillary Clinton se
vangloriava de ser a herdeira do legado de Obama, e este havia sido um desastre.
Mas, em segundo lugar, a herança de Obama não pôde ser pior em matéria
de política internacional. Passou oito anos guerreando nos cinco continentes, e
sem conquistar nenhuma vitória. Ao
contrário, a posição relativa dos Estados Unidos no tabuleiro geopolítico
mundial se debilitou significativamente ao longo desses anos. Por isso, foi um
acerto publicitário de Trump quando utilizou para sua campanha o slogan “Vamos
fazer os Estados Unidos serem grande outra vez!”. Obama e Hillary propiciaram
golpes de Estado na América Latina (em Honduras, Equador, Paraguai) e enviaram
ao Brasil Liliana Ayalde, a embaixadora que havia monitorado a conspiração que
derrubou Fernando Lugo, para fazer o mesmo contra Dilma. Atacou a Venezuela com
uma estúpida ordem presidencial declarando que o governo bolivariano constituía
uma “ameaça extraordinária à segurança nacional e à política exterior dos
Estados Unidos”. Obama retomou as relações diplomáticas com Cuba, mas fez pouco
ou nada para acabar com o bloqueio. Orquestrou o golpe contra Muammar
al-Gaddafi inventando uns “combatentes pela liberdade” que por fim eram
mercenários do império. E Hillary merece a humilhação de ter sido derrotada por
Trump ainda mais por sua gargalhada repugnante quando lhe sussurraram no
ouvido, enquanto estava em uma audiência, que Gadaffi havia sido capturado e
linchado. Toda sua degradação moral ficou refletida para a História nesta
gargalhada. Logo depois disso, Obama e sua Secretária de Estado repetiram a
operação contra o presidente da Síria, Basher al Assad, e destruíram a Síria ao
passo que, como confessou a Clinton, “nos equivocamos ao eleger os amigos”, - a
quem deram cobertura diplomática e midiática, armas e grandes quantidades de
dinheiro. Do ovo da serpente nasceu,
finalmente, o tenebroso e criminal Estado Islâmico. Obama declarou uma guerra
econômica não só contra a Venezuela, mas também contra a Rússia e o Irã,
aproveitando-se da queda do preço do petróleo originado no roubo de
hidrocarboneto pelos jihadistas que ocupavam a Síria e Iraque. Enviou uma
mensagem à Secretária de Estado Adjunta para Assuntos Euroaisáticos, Victoria
Nuland, para oferecer poio logístico e militar aos grupos neonazistas
que queriam acabar com o governo legítimo da Ucrânia, e o conseguiram ao preço
de colocar o mundo, como recorda o papa Francisco, à margem de uma Terceira
Guerra Mundial. E para conter a China, despachou grande parte de sua frota de
mar para a Ásia, obrigando o governo do Japão a mudar sua constituição, para
permitir que suas tropas saíssem do território nipônico, com a evidente
intenção de ameaçar a China, e instalou duas bases militares na Austrália para,
desde o Sul, fechar o círculo sobre a China. Em resumo, uma cadeia interminável
de desmandos e fracassos internacionais que provocaram inenarráveis sofrimentos
a milhões de pessoas.
Dito isso, ninguém poderia se surpreender por Trump ter derrotado a
candidata da continuidade oficial. Com a chegada do presidente eleito à Casa
Branca, a globalização neoliberal e o livre comércio perderam seu promotor
mundial. O magnata nova-yorkino se manifestou contra o Tratado Transpacífico
(TPP); falou em dar fim ao NAFTA (acordo comercial entre Estados Unidos, México
e Canadá); e se declarou a favor de uma política protecionista que recupere
para o seu país os empregos perdidos para as mãos de seus competidores
asiáticos. Por outro lado, e em contraposição à suicida beligerância de Obama
contra a Rússia, propõe fazer um acordo com este país, para estabilizar a
situação na Síria e no Meio Oriente, porque é evidente que tanto os Estados
Unidos, como a União Europeia têm sido incapazes de fazê-lo. Há, portanto, uma
mudança muito significativa no clima da opinião que domina as alturas do império.
Os governos da Argentina e do Brasil, que se iludiam pensando que o futuro
destes países passaria por “isentar-se no mundo” via livre comércio (TTP,
Aliança do Pacífico, Acordo da União Europeia com o MERCOSUL), mais valeria se
atualizassem seus discursos e começassem a ler Alexander Hamilton, primeiro
Secretário do Tesouro dos Estados Unidos, e pai fundador do protecionismo
econômico. Sim, acabou um ciclo: o do neoliberalismo, cuja doença maligna
converteu a União Europeia em uma potência de segunda ordem e fez com que os
Estados Unidos entrasse pelo caminho de uma lenta, mas irreversível decadência
imperial. Paradoxalmente, a eleição de um xenófobo e misógino milionário
norte-americano poderia abrir, para a América Latina, inimagináveis
oportunidades para romper a camisa de força do neoliberalismo e ensaiar outras
políticas econômicas, uma vez que as que até agora foram defendidas por
Washington caíram em desgraça. Como diria Eric Hobsbawm, estão vindo “tempos
interessantes”, porque para salvar o império, Trump abandonará o credo
econômico-político que tanto dano causou ao mundo desde o final dos anos 70.
Devemos saber aproveitar esta inédita oportunidade.
*Atílio Borón é sociólogo argentino
www.vermelho.org.br
11/11/2016
Nenhum comentário:
Postar um comentário