quarta-feira, 23 de novembro de 2016

TRUMP NÃO SIGNIFICA O FIM DO CICLO PROGRESSISTA NA AMÉRICA LATINA

Trump não significa o fim do ciclo progressista na América Latina


No último ano, falar do “fim do clico progressista” virou moda na América Latina. Uma das possibilidades para tão temida e infundada tese era a continuidade das políticas de livre comércio e de globalização comercial impulsionadas por Washington desde os tempos de Bill Clinton e que seus admiradores pensavam que seriam continuadas por sua esposa Hillary para outorgar sustento às tentativas de recomposição neoliberal em curso na Argentina e no Brasil.

Atílio Borón*

Paradoxalmente, a eleição de um xenófobo e misógino poderia abrir, para a América Latina, oportunidades para romper a camisa de força do neoliberalismo.

Mas confrontados pelo tsunami Donald Trump, se veem desconcertados, e poucos, tanto aqui como nos Estados Unidos, conseguem compreender o que aconteceu. Caíram nas armadilhas das pesquisas que fracassaram na Inglaterra com o Brexit, na Colômbia com o “não”, na Espanha com o Podemos e agora nos Estados Unidos ao prognosticar por unanimidade o triunfo da candidata do partido Democrata. Também foram vítimas do microclima que normalmente acompanha certos políticos, e confundiram as opiniões que prevaleceram entre os assessores e conselheiros de campanha com o sentimento e a opinião pública do conjunto da população norte-americana, esta sem educação universitária, com altas taxas de desemprego, economicamente arruinada e frustrada pelo lento, mas inexorável desaparecimento do sonho americano, convertido em um interminável pesadelo.
Por isso falam da “surpresa” de quarta-feira (9) pela madrugada, mas como observou, então, com astúcia Omar Torrijos, líder da Revolução no Panamá, na política não há surpresas, há surpreendidos. Vejamos algumas das razões pelas quais Trump se impôs nas eleições.

Primeiro, porque Hillary Clinton fez sua campanha proclamando o orgulho que enchia seu espírito por ter contribuído com a administração de Barack Obama, sem parar um minuto para pensar que a gestão de seu mentor foi um verdadeiro fiasco. Suas promessas de “sim, nós podemos” foram severamente sepultadas pelas intrigas e pressões do que os mais agudos observadores da vida política norte-americana – esses que nunca chegam aos grandes meios daquele país – denominam “o governo invisível” ou “Estado profundo”. As mais módicas tentativas reformistas de Obama no plano doméstico naufragaram sistematicamente, e nem sempre por culpa da maioria republicana no Congresso.

Sua intenção de fechar a penitenciária de Guantánamo (Cuba) se diluiu sem deixar maiores rastros e Obama, laureado com um não merecido Prêmio Nobel, careceu de coragem necessária para defender seu projeto e se entregou sem lutar diante dos falcões.

Assim como ocorreu com o “Obamacare” [programa social de Obama], a malfeita reforma do absurdo, caríssimo e ineficiente sistema de saúde dos Estados Unidos, fonte de críticas contundentes, sobretudo entre os eleitores da terceira idade, mas não só entre eles. Não teve melhor sorte a reforma financeira, logo no início da crise de 2008 que atingiu a economia mundial em uma onda recessiva que não dá sinais de diminuir e que pese as promessas vazias produzidas pela Casa Branca e pelas distintas comissões do Congresso, manteve ilesa a impunidade do capital financeiro para fazer e desfazer seus caprichos, com as habituais consequências.

Enquanto as receitas da maioria da população economicamente ativa registravam – não em termos nominais, mas reais – um estancamento de quase meio século, os lucros de 1% mais rico da sociedade norte-americana cresceram astronomicamente. Tanto é assim que um autor como Zbigniew Brzezinski, com tão pouco afeto pelas categorias de analises marxistas, vinha há algum tempo expressando sua preocupação caso os fracassos da política econômica de Obama incendiassem a fogueira da luta de classes nos Estados Unidos. Na verdade, esta vinha desabrochando com crescente força desde o começo dos anos 90 sem que ele, e a grande maioria dos “especialistas”, se dessem conta do que estava ocorrendo debaixo de seus narizes.

Só que a luta de classes no coração do sistema imperialista não pode ter as mesmas formas que este enfrentamento assume na periferia. É menos visível e ruidoso, mas nem por isso inexistente. Vem daí a tardia preocupação do aristocrata polaco-americano Zbigniew Brzezinski. Em matéria de reforma migratória, Obama tem a duvidosa honra de ter sido o presidente que mais deportou imigrantes sem documentos, incluindo um exorbitante número de crianças que queriam se reunir com suas famílias. Em resumo, Hillary Clinton se vangloriava de ser a herdeira do legado de Obama, e este havia sido um desastre.

Mas, em segundo lugar, a herança de Obama não pôde ser pior em matéria de política internacional. Passou oito anos guerreando nos cinco continentes, e sem conquistar nenhuma vitória. Ao contrário, a posição relativa dos Estados Unidos no tabuleiro geopolítico mundial se debilitou significativamente ao longo desses anos. Por isso, foi um acerto publicitário de Trump quando utilizou para sua campanha o slogan “Vamos fazer os Estados Unidos serem grande outra vez!”. Obama e Hillary propiciaram golpes de Estado na América Latina (em Honduras, Equador, Paraguai) e enviaram ao Brasil Liliana Ayalde, a embaixadora que havia monitorado a conspiração que derrubou Fernando Lugo, para fazer o mesmo contra Dilma. Atacou a Venezuela com uma estúpida ordem presidencial declarando que o governo bolivariano constituía uma “ameaça extraordinária à segurança nacional e à política exterior dos Estados Unidos”. Obama retomou as relações diplomáticas com Cuba, mas fez pouco ou nada para acabar com o bloqueio. Orquestrou o golpe contra Muammar al-Gaddafi inventando uns “combatentes pela liberdade” que por fim eram mercenários do império. E Hillary merece a humilhação de ter sido derrotada por Trump ainda mais por sua gargalhada repugnante quando lhe sussurraram no ouvido, enquanto estava em uma audiência, que Gadaffi havia sido capturado e linchado. Toda sua degradação moral ficou refletida para a História nesta gargalhada. Logo depois disso, Obama e sua Secretária de Estado repetiram a operação contra o presidente da Síria, Basher al Assad, e destruíram a Síria ao passo que, como confessou a Clinton, “nos equivocamos ao eleger os amigos”, - a quem deram cobertura diplomática e midiática, armas e grandes quantidades de dinheiro.  Do ovo da serpente nasceu, finalmente, o tenebroso e criminal Estado Islâmico. Obama declarou uma guerra econômica não só contra a Venezuela, mas também contra a Rússia e o Irã, aproveitando-se da queda do preço do petróleo originado no roubo de hidrocarboneto pelos jihadistas que ocupavam a Síria e Iraque. Enviou uma mensagem à Secretária de Estado Adjunta para Assuntos Euroaisáticos, Victoria Nuland, para oferecer poio logístico e militar aos grupos neonazistas que queriam acabar com o governo legítimo da Ucrânia, e o conseguiram ao preço de colocar o mundo, como recorda o papa Francisco, à margem de uma Terceira Guerra Mundial. E para conter a China, despachou grande parte de sua frota de mar para a Ásia, obrigando o governo do Japão a mudar sua constituição, para permitir que suas tropas saíssem do território nipônico, com a evidente intenção de ameaçar a China, e instalou duas bases militares na Austrália para, desde o Sul, fechar o círculo sobre a China. Em resumo, uma cadeia interminável de desmandos e fracassos internacionais que provocaram inenarráveis sofrimentos a milhões de pessoas.

Dito isso, ninguém poderia se surpreender por Trump ter derrotado a candidata da continuidade oficial. Com a chegada do presidente eleito à Casa Branca, a globalização neoliberal e o livre comércio perderam seu promotor mundial. O magnata nova-yorkino se manifestou contra o Tratado Transpacífico (TPP); falou em dar fim ao NAFTA (acordo comercial entre Estados Unidos, México e Canadá); e se declarou a favor de uma política protecionista que recupere para o seu país os empregos perdidos para as mãos de seus competidores asiáticos. Por outro lado, e em contraposição à suicida beligerância de Obama contra a Rússia, propõe fazer um acordo com este país, para estabilizar a situação na Síria e no Meio Oriente, porque é evidente que tanto os Estados Unidos, como a União Europeia têm sido incapazes de fazê-lo. Há, portanto, uma mudança muito significativa no clima da opinião que domina as alturas do império. Os governos da Argentina e do Brasil, que se iludiam pensando que o futuro destes países passaria por “isentar-se no mundo” via livre comércio (TTP, Aliança do Pacífico, Acordo da União Europeia com o MERCOSUL), mais valeria se atualizassem seus discursos e começassem a ler Alexander Hamilton, primeiro Secretário do Tesouro dos Estados Unidos, e pai fundador do protecionismo econômico. Sim, acabou um ciclo: o do neoliberalismo, cuja doença maligna converteu a União Europeia em uma potência de segunda ordem e fez com que os Estados Unidos entrasse pelo caminho de uma lenta, mas irreversível decadência imperial. Paradoxalmente, a eleição de um xenófobo e misógino milionário norte-americano poderia abrir, para a América Latina, inimagináveis oportunidades para romper a camisa de força do neoliberalismo e ensaiar outras políticas econômicas, uma vez que as que até agora foram defendidas por Washington caíram em desgraça. Como diria Eric Hobsbawm, estão vindo “tempos interessantes”, porque para salvar o império, Trump abandonará o credo econômico-político que tanto dano causou ao mundo desde o final dos anos 70.

Devemos saber aproveitar esta inédita oportunidade.

*Atílio Borón é sociólogo argentino


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